A importância da cadelinha em José Saramago

A reedição de Cadernos de Lanzarote III e do romance Caim obrigam à releitura de Saramago
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A ousadia de José Saramago era reconhecida, fosse em declarações públicas, fosse na escrita. Isso pode confirmar-se através da reedição de dois volumes das obras do Prémio Nobel da Literatura na nova editora, a Porto: a diarística em Cadernos de Lanzarote III e a ficção em Caim. Essa ousadia confirma-se logo no primeiro verbete dos seus diários pois começa por dar notícia da fuga de uma cadelinha "impertinente e irresponsável" em vez de referir qualquer situação importante no mundo. Tema a que regressa no terceiro verbete, afinal a cadelinha regressou a casa. Felizes, deram-lhe o nome de Greta, a atriz. Mais uma vez, o Nobel entrega aos leitores o que lhe interessava contar e ninguém se importa com a importância das temáticas.

É certo que se estes pormenores não seduzem certos leitores, interessam aos biógrafos, para fazerem certas partes da reconstituição da vida do escritor. Designadamente no que respeita ao seu lidar com os animais. Com uma cadelinha ou com um elefante, porque ambos aparecem nos seus romances. O paquiderme uma vez com destaque em A Viagem do Elefante, os caninos em frequentes livros e com papéis de bastante relevo. Há o quatro patas de Jangada de Pedra, outro em A Caverna... Portanto, não será apenas ao biógrafo que este primeiro e terceiro verbetes - e há outro na página 17 -, captam a atenção, devendo o leitor amante de Saramago dar--lhes alguma importância, pois são tão personagens ou protagonistas com Blimunda ou Ricardo Reis.

Deixando a cadelinha à sua sorte, passemos a coisas mais sérias, com que o autor destes Cadernos de Lanzarote ainda irá preocupar--se. É o caso do segundo verbete, entre os dos caninos, em que trata das reações ao polémico romance Evangelho segundo Jesus Cristo, a propósito de correspondência chegada à ilha vinda de Israel. Ou quando sabe da morte de Miguel Torga: "Sai do mundo aos 87 anos, depois de uma longa e dolorosa doença." E levanta uma questão: "Porque há uma diferença entre estar morto Torga e estar Torga vivo." Acrescenta a opinião sobre a sua "relação só de leitor". Mais profunda com Susan Sontag: "Em Madrid para o lançamento de El Amante del Volcán", a autora que confessara ao El País que "Juan Goytisolo e José Saramago eram os seus escritores preferidos". Mais uma vez o biógrafo tem muita matéria para construir o retrato do Nobel da Literatura.

E depois reedita-se Caim, o seu último romance - não se pode contar Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas como tal -, que é um momento de alta confrontação como os mitos da Bíblia a que o escritor se lança. Uma história em centena e meia de páginas que destrói todas as passagens do Livro, desde a "perfeição de adão e eva" até acabar no Noé da arca, vilipendiado de todas as formas possíveis. No entanto, Caim é um dos grandes romances fora do principal quarteto saramaguiano e não deve deixar de ser relido. Até porque a maioria dos leitores tem aqui um volume em que não se pode dizer que seja de difícil leitura, mesmo que à época fosse muito confundido pelas palavras provocadoras do autor na sessão de lançamento que impôs na praça pública a melhor acusação. "A Bíblia é um manual de maus costumes."

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