A imensa ternura de Jim Jarmusch
"Vejo muitos filmes com um recurso incrível à poesia. Não estou seguro de que Paterson seja um caso isolado. Por outro lado, não sou bem o tipo mais mainstream da América e o cinema que eu vejo não me permite falar do que se passa em Hollywood." São palavras de Jim Jarmusch num encontro em Cannes com alguma imprensa internacional. O cineasta que já foi príncipe, rei e agora padrinho do cinema indie americano não quer ficar com os louros de apostar forte no efeito da poesia no cinema. Poderia fazê-lo, este seu novo filme, Paterson, a história de um motorista de autocarro de um subúrbio de Nova Jérsia com poesia na cabeça, é em si mesmo uma declaração de amor sobre os valores da poesia.
Também o documentário sobre os Stooges, Gimme Danger, acaba por ter poesia. Uma poesia mais magoada e em rima com o rock punk da banda de Iggy Pop. Dois filmes novos que o trazem ao Lisbon and Estoril Film Festival e que nos convidam a refletir sobre um percurso singular, muito singular, deste herói no cinema americano. Um artista que está de novo no pico de forma (vamos esquecer Os Limites do Controlo, feito em 2009 e que terá sido a sua única mancha negra). Paterson aguenta-se e eleva-se por entre uma finura e uma tranquilidade raramente vistas. Um filme zen capaz de nos fazer levitar com a poesia de Ron Padgett, enquanto Gimme Danger sobrevive à fórmula das "cabeças falantes" para nos colocar no centro do furacão da banda que influenciou muitas gerações.
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Para Jarmusch, a criação artística é o ponto de partida de ambos os filmes. Um cineasta que filma as cidades e o amor de uma forma cada vez mais repousada: "Acho que as histórias de amor entre duas pessoas são sempre mais belas quando aceitamos a outra pessoa por aquilo que ela é. Gosto de ver histórias de amor em que os casais não tentam mudar-se um ao outro. Claro que para isso é preciso cedência, mas em qualquer relação temos de aprender a ceder. Quando amamos profundamente uma pessoa acabamos por aceitá-la conforme ela é. Este casal ama-se muito e há na história deles uma imensa ternura. O único conflito que têm é quando ela lhe diz "talvez devesses ter um telemóvel"... mas depois nem insiste. O meu filme anterior, Só os Amantes Sobrevivem, já era sobre isso".
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Em Paterson, a magia do casal também se deve à escolha dos atores. Em Só os Amantes Sobrevivem, Tom Hiddleston e Tilda Swinton tinham uma química, aqui, Adam Driver e Golshifeth Farahani têm uma orgânica... É possivelmente o casal mais romântico do ano. E o que é garantido é que na câmara de Jarmuch todo esse romantismo nunca é tolo. Tudo é justo e com a tal serenidade implacável. Uma serenidade que é a cara do realizador, cuja voz baixa e o tom cantado condizem com a imagem do cineasta cool nova-iorquino. E, tal como a personagem, também não é muito digital: "Claro que tenho um telemóvel mas evito imenso estar online. Tenho de ter tempo para escrever, fazer música e lutar para fazer cinema. Dessa forma, recuso ter conta de e-mail. É uma forma de proteção. Há um pouco de mim nesta personagem, o motorista Paterson, também acho que os telemóveis são uma coleira. Em Nova Iorque, nos passeios, as pessoas cada vez caminham mais a olhar para o telemóvel. Apetece-me dar-lhes encontrões, cambada de carneiros! Fico tão frustrado."
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Se é verdade que desde os anos 1980 o seu nome ganhou peso na América, também é verdade que décadas depois continua a pagar a fatura de ser independente e livre. Jarmusch conta que a luta para ser criador cinematográfico está ainda mais dura: "Por acaso, no caso destes meus dois filmes novos tive sorte. Encontrei a Amazon, que me deu muito apoio e uma total liberdade artística. A estratégia deles para as apostas em cinema é muito ousada, bem ao contrário agora dos estúdios de Hollywood, que estão cada vez mais cobardes. Têm medo de tudo aquilo que não conseguem catalogar. Pensam sempre em demografia... Estão a cavar a sua sepultura no que diz respeito a inovação. Têm um medo enorme de propostas artísticas arriscadas. Ainda me lembro de uma vez o Samuel Fuller dizer-me: "Estes tipos de Hollywood antes estavam no negócio da roupa interior e agora querem dizer-nos como fazer filmes." Claro que sei que tudo isto é um negócio, mas, por exemplo, em França, o meu distribuidor é também um cinéfilo... Enfim, está cada vez mais difícil para mim ganhar financiamentos para os meus filmes. No meu caso, tenho um pequeno negócio: sou também um produtor independente. Ao longo dos anos poupei algum dinheiro que tive de investir nos meus próprios filmes... Já ninguém aparece para me financiar. Estou numa situação complicada. Já não consigo aguentar financeiramente os meus filmes. Antes era diferente, mas mesmo não gostando de ser nostálgico, lembro-me de que era fácil receber financiamento da Alemanha, do Japão e de França. Estas questões dos dinheiros são um disparate!"
Mesmo assim, aceitou dar o seu nome como produtor associado a uma coprodução luso-americana, Porto, de Gabe Kingler, de Rodrigo Areias e sua Bando à Parte, e que fez algum furor no Festival de San Sebastián, igualmente presente no LEFFEST. "Gosto de colocar o meu nome em pequenos projetos interessantes, sobretudo se isso os ajudar. Foi o que aconteceu em Porto, que é um projeto muito bom e que tem o Anton Yelchin, ator que chegou a trabalhar comigo. Quando me solicitam apenas digo para não me pedirem conselhos. Só quero proteger aqueles em quem acredito, nada mais. Nesses projetos, nunca me envolvo na montagem nem nada disso. O máximo que posso fazer é aparecer se alguém quiser interferir no controlo do filme. Gosto de ajudar novos cineastas com potencial para eles poderem fazer o filme que querem." Uncle Howard, o documentário de Aaron Brookner, teve o tal carimbo de Jarmusch e também pode ser visto no mesmo festival a partir da próxima semana.
Sobre Gimme Danger, era um filme que tinha de acontecer. Jarmusch é fã declarado dos Stooges e considera que o som daquela banda foi a sua maior influência nos tempos da adolescência juntamente com os Velvet Underground e os MC5: "Os Stooges são a maior banda de rock"n"roll de sempre. Amo profundamente a banda e há oito anos o meu amigo Iggy Pop disse-me que adorava que fosse eu fazer o filme sobre os Stooges. Respondi-lhe que começaria logo a filmar no dia a seguir. Ele só disse: "Quem me dera." Estou tão orgulhoso! Não é um documentário, é uma carta de amor, um ensaio." Gimme Danger é filme de fã para fãs. Um cineasta rock"n"roll (embora assumidamente pseudobudista) a filmar rock"n"roll punk rocker.