A Ilha do Tesouro
De São Tomé, Fernanda Timóteo traz a memória das pessoas, dos cheiros e de um tesouro desenterrado no quintal da sua casa. O 25 de Abril apanhou-a de férias em Portugal. Nunca mais voltou à sua terra, mas as raízes ficaram lá e continuam a chamá-la.
«Lembro-me como se fosse hoje de um tesouro que encontrámos nas traseiras da nossa casa em São Tomé, quando os meus pais desbravaram o capim que crescia ali à roda. Começaram por descobrir vestígios do que pareciam ser trincheiras e desenterraram fivelas, cintos e capacetes», conta Fernanda. Um dia, encontraram algo muito mais valioso. «Foram retirando da terra caixas com moedas de vários tipos. Algumas do tempo da rainha Vitória e outras que não reconhecíamos, mas todas valiosas. Recordo-me que eram pesadas e de ouro», continua: «Eu e o meu irmão ficámos doidos com a descoberta. Para nós era um tesouro de piratas! Mas o meu pai, que era polícia e um homem muito recto, entregou tudo às autoridades.» Do tesouro nunca mais se soube nada, mas esta aventura inicial marcou o deslumbramento que Fernanda sentiu por aquela pequena ilha no meio do Atlântico. Ao longo dos anos, as riquezas que o país parecia prometer sob a forma de moedas de ouro, foram substituídas pela generosidade das pessoas e da terra, pelo «cheiro de África», pela vivência em comunidade e pela solidariedade sempre presente.
O «chefe» Timóteo, pai de Fernanda, foi um dos muitos portugueses que aceitou ir para São Tomé na década de 1960. «Eu nasci no Casal da Charneca, freguesia de Almoster, Santarém. Era pequena quando o meu pai foi para Cascais, primeiro como polícia sinaleiro e depois para fazer a guarda pessoal do Américo Tomás. Nós fomos com ele. Quatro anos depois viajámos juntos para África.» O início em terras africanas foi duro: «Na primeira casa onde ficámos estavam instaladas várias famílias. Os colchões onde dormíamos eram de palha de coco, muito rijos, e a minha mãe chorava muito. Sentia-se culpada porque achava que éramos muito pequenos e que devíamos ter o mesmo conforto que tínhamos em Portugal», conta.
Fernanda habituou-se facilmente e percebeu que se apaixonara definitivamente pela ilha além-mar quando regressou da primeira ida a Portugal, para gozar a licença graciosa do pai. «Assim que comecei a ver São Tomé, o meu sorriso e bem-estar voltaram. Apesar de não nos oferecer muita coisa, era tudo muito bom e muito puro. Nessa altura eu já tinha 15 anos e a minha vida era ali. Até a minha mãe já era mais santomense do que de Santarém.»
A sensação de liberdade foi dos maiores presentes que recebeu da terra. Tanto, que só quando veio para Lisboa é que percebeu que a relação entre rapazes e raparigas podia não ser tão despreocupada como a que vivia ali: «O ensino era misto, e mesmo no período de férias, quando passávamos uns dias na Roça Sundi, na ilha do Príncipe, ficávamos todos juntos.»
Apesar da felicidade daqueles anos não esquece a guerra que começou logo em 1961, assim como a ponte aérea humanitária criada a partir de Julho de 1968 e que pretendia ajudar as vítimas da guerra do Biafra. «Quando rebentou a guerra na Nigéria, começaram a ser retiradas as crianças dos locais mais afectados. Nós íamos ao aeroporto buscá-las e ajudávamos no hospital. O meu pai também se envolveu muito. Ele tirava a camisa do corpo para dar a quem precisasse», relata. Foi nesta terra e com estes exemplos que se forjou a sua sensibilidade solidária e humanitária: «Ainda andava na escola primária quando se formou o grupo das vicentinas, promovido pelo padre Teixeira e pela dona Alice, a nossa “comandante”. Fazíamos visitas às pessoas mais pobres da ilha, que trabalhavam nas roças de café e cacau.» O grupo recolhia alguns alimentos e outros produtos necessários pelos comerciantes locais, e ao fim-de-semana fazia a distribuição: «Uma das coisas que mais me impressionava era a leprosaria, que ficava nas encostas por baixo do hospital e que ninguém visitava. Levávamos bolachas e cigarros. Nunca senti medo, antes pelo contrário, sentia-me bem.»
Fernanda é hoje conhecida pela sua acção em prol dos outros. À padaria onde trabalha há 15 anos em Lisboa chega todo o tipo de pedido de ajuda. E a todos procura dar vazão. Porque era assim que se vivia na ilha de São Tomé. «É das coisas mais lindas que há em África. Todos os anos penso que será o ano em que vou voltar, mas as viagens são muito caras e ainda não consegui reunir o suficiente para ir. Gostava de mostrar à minha filha os locais onde cresci, andei na escola, onde brinquei, onde fui feliz!» Fernanda tem saudades de tudo. «Do cheiro do safu (fruto que se serve cozido ou assado como sobremesa), das carambolas, e da fruta-pão que se comia assada com manteiga. Não há como explicar. Só quem esteve lá é que sabe. É um encantamento. Não sabes o que é o cheiro de África, Patrícia – digo à minha filha – parece que os deuses chamam por nós».