"A Igreja não tem só um problema com os homossexuais, tem um problema com o sexo"

É curta a história de grupos ou associações de homossexuais católicos em Portugal que procuram entreajuda e uma mudança na doutrina do Vaticano. Com a discreta cumplicidade de membros do clero, estes grupos oscilam entre a frustração da "mudança que não vem" e a esperança dos "passos possíveis".
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Foi algures em 2010 que José Leote contactou por e-mail o Mosteiro de Santa Maria, no Lumiar. Ali se recolhia desde o início da década de 80 um grupo de monjas dominicanas orientadas pela irmã Maria Domingos. Ele procurava um espaço em Lisboa para os encontros da Associação Rumos Novos, que ajudara a criar dois anos antes, e as monjas eram a sua última esperança. Este empresário algarvio, hoje com 62 anos, já tinha batido à porta de quase todas as paróquias de Lisboa, recebendo o silêncio como resposta. Mas três ou quatro meses depois do e-mail à irmã Maria Domingos abriram-se-lhe as portas.

José Leote ficou tão espantado com tamanha disponibilidade que telefonou para o Lumiar e sublinhou o que pudesse não ser assim tão óbvio: que a Rumos Novos era uma associação de homossexuais católicos e pretendia ali reunir-se uma vez por mês. Voltou a surpreender-se. A irmã, então com 74 anos, tinha percebido muito bem o pedido e do outro lado do telefone afirmou: "Não temos nenhum sinal à porta a proibir a entrada. Na casa de Deus são bem-vindos todos os que querem refletir sobre a palavra de Jesus Cristo." A irmã dominicana viria a morrer em fevereiro de 2021 e desde 2019 vivia em Fátima juntamente com as outras monjas dominicanas, que entretanto tinham deixado Lisboa.

O episódio do telefonema foi agora recordado ao DN pelo seu protagonista, homossexual católico que vivia em Évora quando ajudou a fundar a Rumos Novos em maio de 2008, ao lado de meia-dúzia de amigos e conhecidos que na década de 90 tinham passado pela Associação Portuguesa de Homossexualidade Masculina (APHM) - um grupo nunca formalmente registado e, talvez por isso, muito esquecido quando se conta a história do ativismo português em torno de direitos civis de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT).

Durante anos, era no Mosteiro do Lumiar que a Rumos Novos acolhia partilhas, celebrações, confissões e debates, algumas vezes com a cumplicidade de um padre brasileiro radicado em Portugal. "O objetivo da nossa associação era o reconhecimento pela Igreja dos casais do mesmo sexo e uma alteração doutrinária profunda, que acolhesse estas pessoas sem lhes falar em pecado ou em "atos intrinsecamente desordenados".", disse José Leote ao DN, confessando-se desiludido.

"As reivindicações que tínhamos em 2008 são exatamente as mesmas que temos hoje. Infelizmente estamos no mesmo ponto. O Papa Francisco diz que a Igreja acolhe todos, e disse-o com clareza em Lisboa durante a Jornada Mundial da Juventude, mas mantém a doutrina dos antecessores: acolher o pecador, mas não o pecado. Propõe acolher os homossexuais desde que estes sejam celibatários como os sacerdotes. Não podemos aceitar".

Este ativista - que hoje vive em Portimão, de onde é natural - gosta de frisar que desde a adolescência sempre assumiu os seus namorados "sem exibir ou viver escondido" e que na sua paróquia atual, bem como nas outras que frequentou, nunca sentiu "qualquer animosidade de párocos ou da restante comunidade". Porém, não se deixa convencer pela possibilidade de bênção de casais homossexuais, autorizada desde 18 de dezembro através do documento Fiducia Supplicans do Dicastério para a Doutrina da Fé.

"A mudança que muitos esperam não vem. O próprio documento o diz ao referir que a bênção é oferecida a todos os casais do mesmo sexo que "apesar dos seus erros" decidam "abrir-se ao bem", isto é, que queiram abandonar a sua sexualidade".

A igreja, disse José Leote, "não tem só um problema com os homossexuais, tem um problema com o sexo". "Com os divorciados, com os unidos de facto, com o sexo antes do casamento, com as práticas homossexuais. É um problema vasto da hierarquia da Igreja", acrescentou. Por isso, a instituição "precisa urgentemente de perder o hábito de falar para os fiéis homossexuais e de passar a falar juntamente com eles, tem de aprender a escutar estas pessoas, para conseguir perceber as suas dúvidas e os seus anseios".

Tanto quanto se sabe, na falta de estudos ou literatura sobre o tema, é curta a cronologia do associativismo católico homossexual no nosso país. Antes da Rumos Novos tinha existido a associação Riacho, inspirada no movimento italiano La Fonte, fundado em Milão por frei Domenico Pezzini. A convite do padre José Manuel Almeida, Pezzini visitou Lisboa em 2003 para falar da relação entre a Igreja e os homossexuais. A partir daí, várias pessoas de orientação homossexual passaram a reunir-se com regularidade e muita discrição na Capela do Rato (cenário da conhecida Vigília de 1972 contra a Guerra Colonial).

Tais reuniões haveriam de aparecer relatadas na primeira pessoa no livro de 2014 Memória de Lápis de Cor, de José António Almeida, "poeta, homossexual e católico", como aí se descreve. "As reuniões com um minoritário grupo de católicos na Capela do Rato para rezar e refletir sobre a nossa comum condição homossexual, o primeiro grupo com tal propósito e semelhantes características que se constitui em Portugal, tiveram início em outubro de 2003", escreveu. "Eram tempos difíceis, respirava-se uma atmosfera social envenenada pelos meandros pantanosos do obscuro Processo Casa Pia."

Antes, a já referida APHM tinha tido um pequeno grupo inorgânico de católicos, que mais tarde originaram a Rumos Novos. Aliás, segundo José Leote, a APHM funcionou antes ainda de aparecer a ILGA Portugal, em 1995, que entre nós é considerada a primeira associação LGBT formalizada e que nasce do ativismo em torno do acesso a tratamentos para doentes com sida.

A Rumos Novos, cujas reuniões foram prejudicadas pela mudança das monjas dominicanas para Fátima e também pelos anos da pandemia, tenciona voltar às atividades regulares já a partir de janeiro. Além desta associação, que só se registou em 2020, surgiram nos últimos anos a Diversidade Católica, no Porto, e o Movimento Sopro, em Coimbra, com os quais o DN não conseguiu falar. O Movimento Sopro formou-se em inícios de 2022, tendo uma presença feminina de destaque, escreveu o jornal religioso 7 Margens.

Um sacerdote de meia-idade que acompanha espiritualmente "pessoas de orientação homossexual" disse ao DN que estas "não se sentem excluídas da Igreja". "Estão profundamente inseridas na vida eclesial e querem trazer a sinceridade do seu ser cristão e a sinceridade das suas relações. Querem apresentar, tanto quanto possível, os frutos da sua experiência crente." O clérigo pediu reserva da identidade "por prudência em face do contexto institucional" em que está inserido e preferiu não pormenorizar quantos homossexuais acompanha e onde. São pessoas que fazem um "caminho de reflexão e oração, à procura de um diálogo discreto e honesto com diversas instâncias eclesiais, porque sabem que têm mais a ganhar com pontes do que com bandeiras radicais", explicou.

"A partir da experiência que tenho, sinto que é desejo sincero das pessoas que as suas relações sejam reconhecidas como projeto de vida a dois, em vez de serem catalogadas como fora dos contextos da moral católica, como sendo relações desordenadas, que é o que diz o Catecismo da Igreja Católica." Segundo o sacerdote, "tem sido sincera" a evolução da Igreja face aos homossexuais e à sua vivência da sexualidade. "Tem sido sincera por parte dos padres, dos bispos e do próprio Papa, embora seja também uma evolução não-linear."

Referindo-se ao documento Fiducia Supplicans, falou em "avanço significativo". A nova regra "traz grande alegria a pessoas de orientação homossexual com quem tenho contactado e que vivem as suas relações com estabilidade", disse. "Alguns fiéis teriam expectativas mais altas, mas este foi um dos passos possíveis no contexto atual. Talvez se possa avançar mais no futuro. Acredito que teremos novidades depois do Sínodo que termina em outubro de 2024", vaticinou.

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