A história de Bruno Fernando, o "bebé gigante" angolano que chegou à NBA

Da infância difícil e do feito conflituoso quando começou a jogar no 1.º de Agosto, em Luanda, à oportunidade que lhe foi concedida pelo ex-basquetebolista Jean Jacques de ir estudar e jogar para os Estados Unidos. O sonho de Bruno tornou-se realidade ao ser escolhido no último <em>draft </em>da NBA.
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"Sou uma mãe cheia de bênçãos. E esta bênção Deus vai continuar a derramar. Não só pelo meu filho, mas por todos aqueles que têm fé e querem chegar até onde o Bruno chegou." Foi desta forma, com lágrimas nos olhos, que Natália Fernando reagiu na madrugada de sexta-feira logo que ouviu o nome do filho ser escolhido no draft da NBA. Bruno Fernando, 20 anos, tinha acabado de cumprir o sonho de menino e de toda uma nação, ao tornar-se o primeiro angolano a chegar à Liga Norte-Americana de Basquetebol Profissional (NBA).

A família e vários amigos, muitos ligados ao clube angolano 1.º de Agosto, reuniram-se num restaurante em Luanda para ver em direto o draft. E foi já de madrugada que receberam a notícia através da televisão - Bruno foi escolhido na 34.ª posição do draft de 2019 da NBA, mas apesar de ter sido eleito pelos Sixers (Filadélfia), o poste de 2,08 metros vai jogar na próxima temporada nos Atlanta Hawks, da Conferência Este, no âmbito de uma troca de jogadores.

"Está consumado. Não é só pela família, mas também pelo povo angolano. Estou muito emocionado. Não tenho palavras", disse em lágrimas de felicidade Bernardo Fernando, pai do jogador, num vídeo colocado nas redes sociais do Clube Desportivo 1.º de Agosto, onde o atleta se iniciou na prática da modalidade.

A odisseia de Bruno Fernando começou verdadeiramente há quatro anos, quando com apenas 16 anos deixou os angolanos do 1.º de Agosto e partiu para os Estados Unidos para estudar e jogar basquetebol. Algo que só foi possível através dos conhecimentos e da ajuda de Jean Jacques, antigo basquetebolista angolano, referência da modalidade em África, que brilhou no Benfica e colabora atualmente no 1.º de Agosto.

Mas o caminho até aqui não foi fácil. Aos 6 anos, Bruno, que vivia em Corimba, Luanda, chegou ao 1.º de Agosto, clube de Luanda. Começou pelo minibásquete, depois passou para a equipa de iniciados e posteriormente cadetes, juvenis e juniores. "A minha ligação a ele é quase como a de uma mãe. Eu na altura era treinadora adjunta do Joaquim Pinto quando ele chegou ao 1.º de Agosto. Aliás, eu não o trato por Bruno. Para mim ele é e será sempre o meu bebé gigante", conta ao DN Luísa Maria Miguel "Valódia", ainda hoje treinadora na formação do clube angolano de basquetebol.

O feitio conflituoso e o problema das sapatilhas

"Ele era uma criança bem traquina, muito mesmo. Em pequeno tinha um feito explosivo, fervia em pouca água e detestava perder. Até quando os outros meninos não lhe passavam a bola ele ficava chateado e reagia mal. Acho que todos nós, os primeiros treinadores do Bruno, temos de estar orgulhosos pelo que ele alcançou. E de certa maneira julgo que contribuímos para este sucesso, pois juntamente com os pais fizemos parte de todo este processo", prosseguiu Luísa "Valódia", lembrando as dificuldades que já na altura tinham com as botas do pequeno Bruno: "Ele aí com os seus anos 10 anos já calçava o 40. Era um problema arranjar-lhe sapatilhas. E ainda por cima tinha os dedos grandes."

Joaquim Pinto, o primeiro treinador de Bruno Fernando no 1.º de Agosto, também destaca o feitio complicado do agora jogador da NBA. "O Bruno começou muito cedo no minibásquete. Era um miúdo sem recursos, com certas dificuldades. Não tinha por exemplo umas sapatilhas em condições e às vezes em termos sociais faltava-lhe alguma coisa. Nós, treinadores, sempre tentámos ajudá-lo, como por exemplo nos transportes. Sempre foi um menino muito inteligente, mas criava alguns problemas. Nem sempre gostava de brincar, às vezes mostrava até uma certa revolta. Não era fácil. Falava pouco, mas às vezes por pouca coisa revoltava-se. Mas nós como treinadores desenvolvemos sempre um trabalho a nível pedagógico para o ajudar a ele e aos outros", referiu Joaquim Pinto.

Para Luísa Maria Miguel "Valódia", a partir de agora "o infinito é o lugar do Bruno", um miúdo que, apesar do feito difícil que revelava em criança, "sempre foi muito dedicado ao desporto e também aos estudos". "Ninguém tem noção da emoção que senti quando ele foi eleito no draft. Acompanhei em casa, através da televisão, até de madrugada. Quando ouvi o nome dele chorei e gritei, até assustei o meu filho de 1 ano. Envie-lhe uma mensagem a desejar-lhe as maiores felicidades. O único conselho que lhe posso dar é que continue a ser humilde e que se entregue a Deus. E que nunca desista de perseguir os seus sonhos, porque tem tudo para ter sucesso e ser feliz. Saber que fiz parte deste processo deixa-me feliz e emocionada", conta, recordando o primeiro dia em que Bruno chegou ao 1.º de Agosto: "Sempre foi muito inteligente. Logo no primeiro dia, se a memória não me escapa, chegou de táxi com um irmão e um tio. Mas depois passou a fazer o percurso sempre sozinho."

Joaquim Pinto, tal como Luísa Miguel, também sente que tem alguma responsabilidade neste passo gigante de Bruno Fernando, que aos 20 anos conseguiu chegar à liga mais forte do mundo. "A chegada à NBA deve-se sobretudo ao trabalho dele, à forma como nunca desistiu e perseguiu o seu sonho. Mas, como é óbvio, nós treinadores da formação também sentimos que é uma vitória nossa. É uma grande emoção vê-lo na NBA. Logo à partida por ser o primeiro jogador angolano a consegui-lo. Depois é um grande feito para Angola, um feito ímpar para toda a nação angolana. Angola é a n.º 1 no basquetebol em África. E alimentámos nos últimos anos esse sonho de um dia vermos um jogador nosso na NBA. Estava escrito, foi uma dádiva do Senhor", diz Joaquim, que assume que "não esperava que isso acontecesse tão cedo".

A importância de Jean Jacques na aventura americana

Jean Jacques, antigo basquetebolista do Benfica e um dos grandes nomes da modalidade em África, foi uma peça fundamental nesta ascensão meteórica de Bruno Fernando. Hoje com 55 anos, e no cargo de conselheiro da direção do 1.º de Agosto, viu então no miúdo de 16 anos potencial para chegar longe e através dos seus conhecimentos conseguiu levá-lo para os Estados Unidos. "Para mim não foi nenhuma surpresa. Já sabia que ele ia ser escolhido no draft. Desde o primeiro dia em que tratei da ida do Bruno para os Estados Unidos, e com o trabalho excelente que ele desenvolveu nos últimos anos, eu já sabia que ele ia chegar à NBA. Por isso digo que para mim não foi assim tão surpresa", assumiu ao DN.

"Sim, pode dizer-se que fui o grande responsável pelo Bruno ter rumado ao Estados Unidos. Vi que estava ali um jogador com potencial, apesar de na altura existirem outros jovens que se calhar até tinham mais. Mas ele nos Estados Unidos teve um grande acompanhamento e disparou", analisou Jean Jacques, fazendo questão de esclarecer que não é um agente de jogadores: "Eu ajudei o Bruno, mas isto de levar jovens valores angolanos para os Estados Unidos não é o meu trabalho. Ajudei o Bruno como outros jovens que vejo que têm qualidade. Não existiu aqui interferências de empresários nem de olheiros. Eu vi que ele tinha potencial e falei com ele. Disse-lhe que se ele estivesse no lugar certo podia atingir um patamar alto. Depois falei com os pais dele sobre a hipótese de ele ir para os Estados Unidos e eles concordaram. E assim foi."

Jean Jacques, que na altura em que estava no ativo ao serviço do Limoges, de França, teve oportunidade de ingressar na NBA mas rejeitou essa possibilidade porque ia ganhar menos do que auferia na equipa francesa, diz que Bruno Fernando não precisa de conselhos. "O Bruno tem uma grande maturidade, já sabe o que tem de fazer. Para chegar onde chegou, longe da família e dos amigos, da terra onde nasceu, abdicou de muitas coisas. E agora lá está ele, na NBA, a melhor liga de basquetebol do mundo."

Nos Estados Unidos, nas várias etapas por que passou, primeiro no ensino secundário na Florida e depois na equipa da Universidade de Maryland, Bruno amadureceu e moldou o seu feitio conflituoso da juventude. Longe vão os tempos em que no 1.º de Agosto, como nos conta o treinador Joaquim Pinto, "pontapeou uma bola com o pé num jogo com o Petro de Luanda que lhe custou a expulsão". Ou as judiarias que fazia aos colegas. "Um dia fomos jogar um torneio a Benguela e acabámos por ficar lá mais tempo do que o previsto. Às tantas, estávamos sem recursos e tivemos de ir comer a casa de um treinador de andebol que eu conhecia. O Bruno era de se alimentar e roubava os pratos de comida aos colegas. Eram pequenos conflitos próprios da idade. Mas sempre foi um menino dedicado ao desporto e aos estudos. Nunca faltou a um treino", recorda Joaquim. "Era mesmo traquina. Tive de lhe dar alguns puxões de orelhas", remata Luísa Maria Miguel "Valódia".

Poucos dias antes do draft, num programa da cadeia de televisão norte-americana NBC, Bruno falou das suas expectativas e também dos momentos complicados que passou por estar longe da família. "No final do dia temos de aceitar a vida tal como ela é e isso é o mais importante para mim, aceitar as coisas tal como elas são. Houve alturas em que foi difícil. Até na universidade, em determinados momentos, olhava para as bancadas e via os pais dos meus colegas a apoiá-los. Eu nunca tive a sorte de ver os meus pais a assistir aos meus jogos e por isso passei por momentos complicados. Mas isso nunca afetou o meu jogo ou a minha forma de ser", garantiu. "Entrar na NBA é algo que não me vai beneficiar só a mim, mas também todo o meu país. Toda a gente vai ficar feliz e orgulhosa. Saber que tenho um país [Angola] todo nas minhas costas, um país que, tal como eu, está a sonhar com esta possibilidade, é algo que me ajudou a tornar este sonho numa realidade", acrescentou.

Como disse Luísa Maria Miguel "Valódia", que o treinou em miúdo no 1.º de Agosto e o trata por "bebé gigante", a partir de agora "o infinito é o lugar do Bruno", o primeiro angolano a chegar à NBA.

O que é o draft

O draft é um processo anual de escolha de jogadores vindos de fora da NBA, seja das universidades norte-americanas (a maioria) ou de ligas estrangeiras (cada vez mais).

As 30 equipas da Liga passam por um sorteio prévio para estabelecer a ordem pela qual podem escolher os jogadores, num esquema pensado para beneficiar as franquias que ficaram mais mal classificadas na época anterior (e que têm, proporcionalmente, mais hipóteses de ficar com as primeiras escolhas no sorteio).

Os jogadores que completam quatro anos na Liga Universitária ficam automaticamente elegíveis para o draft, mas atletas que não tenham cumprido os quatro anos no nível universitário podem também declarar-se ao draft - caso não sejam escolhidos, podem voltar à universidade (uma novidade recente). Os jogadores provenientes de outras ligas internacionais devem também declarar interesse em participar no draft.

Antes de Bruno Fernando, cinco angolanos falharam a entrada na maior liga de basquetebol do mundo, nomeadamente Gerson Monteiro, que tentou pelos San Antonio Spurs, Victor Muzadi (Dallas Mavericks), Olímpio Cipriano (Detroit Pistons), Yanick Moreira (Los Angeles Clippers) e Carlos Morais pelos Toronto Raptors.

Bruno Fernando fez assim história, tornando-se o primeiro basquetebolista angolano a entrar na Liga Norte-Americana de Basquetebol Profissional. Para isso muito contribuíram as suas médias ao serviço dos Terrapins, a equipa da Universidade de Maryland - 13,6 pontos, 10,6 ressaltos, 2,0 assistências, 0,6 roubos de bola, 2,8 perdas de bola, 60,7% de aproveitamento nos arremessos de quadra, 30,0% de aproveitamento nas bolas de três pontos e 77,9% de aproveitamento nos lances livres.

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