A história americana da curda Herro Mustafa
Como diplomata, passou por Mossul, Beirute ou Nova Deli. Mas "para alguém que está a começar uma família, escolhemos um sítio seguro, onde as pessoas adoram crianças". Foi assim que Portugal se tornou na primeira escolha de Herro Mustafa, desde julho de 2016 ministra conselheira na Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa. Um sítio que garantisse à filha, Ariana, com 1 ano, uma infância diferente da da mãe. Nascida em 1973 em Erbil, no Curdistão iraquiano, Herro tinha 3 anos quando chegou com a família à América. "Lembro-me da aterragem. E de ir para a escola", conta agora, em inglês apesar do português fluente, sentada num cadeira de pele numa sala da embaixada.
De tailleur às riscas brancas, verdes e vermelhas e saltos agulha, a diplomata de longos cabelos morenos gosta de contar a sua história. "É uma história americana", explica. E começou antes mesmo de Herro se lembrar. O pai, ativista político, fugiu do Iraque de Saddam Hussein e da perseguição aos curdos com a mulher e os dois filhos. Os Mustafa passaram dois anos num campo de refugiados no Irão antes de irem para os EUA, tendo-se instalado em Minot, no Dakota do Norte.
"Chamamos ao Dakota do Norte a terra dos extremos. Extremamente quente, extremamente frio, extremamente plano", explica Herro. Mas mesmo passadas quatro décadas e com um oceano pelo meio, a ministra conselheira não esquece as pessoas de Minot, nem a forma como a receberam. "São pessoas muito genuínas", característica típica de uma cidade pequena onde todos a conheciam. "Não éramos um em cinco ou dez milhões."
Mas se para ela a maior dificuldade foi ter de passar três anos no mesmo ano até aprender bem inglês, para os pais as coisas não foram fáceis. "Tiveram de começar do nada. Cada um tinha três empregos. O meu pai trabalhou nas limpezas, numa loja de donuts. A minha mãe numa creche, numa lavandaria", recorda. Obrigados a procurar refúgio numa terra longínqua, outra das dificuldades eram as comunicações. Ou a falta delas. "Naqueles primeiros dias, até uma chamada era rara. Só tínhamos notícias [dos familiares que ficaram no Curdistão] quando alguém vinha de lá", conta Herro, sentada diante de uma parede forrada com retratos dos últimos embaixadores em Lisboa.
Herro Mustafa ainda tem família no Curdistão iraquiano. "Tenho tios e primos. A situação melhorou. Para os curdos do Iraque, é muito melhor do que quando nós fugimos", explica, sublinhando que a região passou a ter autonomia. E se "ainda não há paz", pelo menos tornou-se mais fácil comunicar com os familiares: "Todos têm Instagram." Até a mãe de Herro aderiu às novas tecnologias e "começou a usar o Whatsapp e o Viber". E agora "não consigo pará-la", ri-se.
Formada em Segurança Nacional e Médio Oriente pela Universidade de Georgetown, com um mestrado em Princeton, Herro Mustafa entrou para o Foreign Service em 1999, tendo antes trabalhado na Bósnia e em Abu Dhabi. Ao longo de uma carreira que a levou a colaborar com administrações de várias cores - trabalhou com Condoleezza Rice, no governo do republicano George W. Bush, e com o vice-presidente Joe Biden, nos mandatos do democrata Barack Obama -, a diplomata regressou algumas vezes ao Iraque. Depois de uma passagem por Mossul, por motivos de trabalho, teve oportunidade de visitar a família em Erbil. "Foi inacreditável", conta, "pela primeira vez estava a olhar para o meu tio e a ver o rosto do meu pai. A olhar para a minha tia e a ver o rosto da minha mãe. Chorei durante três dias". E como se o reencontro não fosse emoção suficiente, Herro confrontou-se com a morte da avó, durante a sua estada, e com a tarefa de ligar à mãe a contar-lhe. "E liguei!", diz emocionada.
A segunda visita não foi menos empolgante. "Anos mais tarde, voltei com o meu pai para o documentário American Herro, para retraçar os passos dele. Voltámos pela primeira vez à casa que fora dele. Foi muito emotivo", explica. E garante: "Espero levar lá a minha filha."
Com tanta ligação pessoal ao Iraque não espanta que Herro Mustafa recuse ver na guerra que começou com a invasão americana de 2003 um conflito sem fim. "Não podemos pensar nas guerras como sem fim. Se pensarmos assim será difícil conseguir arranjar uma solução." Mas admite que "qualquer solução será complicada porque envolve vários países, cada um dos quais tem diferentes etnias, diferentes religiões, diferentes líderes que têm de ter em conta o bem do país como um todo".
E um dos maiores desafios à paz no Iraque e em toda a região nos últimos anos é o Estado Islâmico. Para Herro Mustafa "parte da fórmula para acabar com o ISIS [sigla pela qual o grupo jihadista sunita é conhecido] passa por garantir que o apoio que recebe deixa de existir".
De Herro a Hero
É o nome de uma flor, mas para os americanos Herro soa a Hero. E foi assim que "até ir para a universidade sempre fui chamada Hero, como heroína". Sem problemas, garante agora a diplomata que ainda hoje está habituada a que o seu nome seja sinónimo de mal-entendidos. "As pessoas veem o meu nome e acham que sou um homem. Não sei quantos e-mails já recebi dirigidos ao senhor Mustafa", brinca.
Mas em termos de piadas Herro - na verdade pronuncia-se Héró - até teve sorte. "O meu irmão... o nome dele escreve-se H-E-L-L-O. Depois de todas as brincadeiras - "Hello, Hello!" "Como te chamas? Hello [Olá, em inglês]", ele decidiu mudar o nome para Helo. Tirou um "l" para ser mais fácil".
Olhando para trás, a ministra conselheira garante que "isto era o menos". O importante é que em Minot "não havia xenofobia, nunca nos trataram como estranhos, diferentes". Naquela pequena cidade do Dakota do Norte "abraçava-se a diversidade em vez de a questionar.
Educada num lar em que as tradições curdas eram mantidas e cultivadas, Herro Mustafa pretende passar esse legado para a filha. Casada com um empresário indiano, a diplomata gosta de sublinhar que continua a falar curdo com os pais. "Todos os que me conhecem no Departamento de Estado sabem que sou curda. Tenho muito orgulho em sê-lo". E o pai de Herro encarrega-se de passar a herança cultural para a neta: "O meu pai quando liga para falar com a neta costuma cantar-lhe canções de embalar curdas. Ela adora."
Mãe trabalhadora, diplomata com uma carreira que já a levou da Ásia Central ao Médio Oriente e à Europa, Herro Mustafa é o exemplo de uma muçulmana de sucesso. Mas nem sempre foi fácil convencer a família a deixá-la seguir o seu caminho. "Em geral os curdos são menos conservadores. Na minha família, as mulheres não usam véu", explica a ministra conselheira. Mas "mesmo assim eram tradicionais". E quando Herro disse que queria ir estudar para o estrangeiro, no Equador, convencer o pai foi um desafio. "Perguntava: "porque queres ir estudar para lá? Porque não ficas cá?"". Perguntas que não espantam se pensarmos que a família se tinha mudado toda do Dakota para Washington quando Herro entrou para Georgetown. Mas entretanto "percebeu a importância da educação e de aproveitar as oportunidades", garante a diplomata, cujos pais ainda vivem no estado da Virgínia, vizinho da capital federal dos EUA.
Ela própria refugiada, Herro Mustafa garante que a sua experiência pessoal foi essencial ao longo de toda a sua carreira - dos inícios na Bósnia até hoje. "Sinto que a minha experiência me pode ajudar a ajudar as outras pessoas. Eu já estive naquela situação. Passei pela guerra, pelas purgas, pela pobreza", conta a diplomata. Para ela não há dúvidas: "Todos querem escapar daquilo. Todos os seres humanos querem ter dignidade."
E no que toca a refugiados, Herro Mustafa faz questão de realçar o exemplo de Portugal. "Tem um ótimo modelo. Eu e o embaixador [Robert Sherman] estivemos no centro de integração para onde vão todos os migrantes e refugiados antes de seguirem para qualquer outro lado. É fantástico", garante a diplomata. A americana sublinha sobretudo a importância de ensinar àquelas pessoas a língua e apoiar o seu empreendedorismo, enquanto lamenta o desconhecimento que existe em relação aos refugiados.
Mulher e muçulmana, o que pensa Herro Mustafa de Donald Trump como presidente dos EUA? A resposta não podia ser mais diplomática: "Primeiro, temos de pôr de lado a retórica e olhar para o que ele vai fazer quando chegar ao poder." E, recorda ainda, o presidente não governa sozinho: "As estruturas são muito importantes em temos de indicar prioridades e formas de lidar com as prioridades." Enquanto espera para ver, Herro tem mais dois anos e meio em Portugal. Tempo para aperfeiçoar mais uma língua, que junta ao inglês, ao curdo, ao árabe, ao hindi, ao espanhol ou ao grego.