'A Herdade' vista por Paulo Branco: "Fui muito feliz naquele tempo"
Em trânsito. Sempre. Poucos momentos antes de começar a nossa conversa, até mesmo as fotografias em pose metódica e controlada podiam ser apresentadas com uma legenda insólita, mas realista: "Vamos a isto, que eu tenho um avião para apanhar..." Assim é, de facto: o produtor Paulo Branco está a poucas horas de embarcar para o Canadá. Objetivo: acompanhar o filme de Tiago Guedes, A Herdade, no Festival de Toronto, alguns dias depois da sua passagem em Veneza, cuidando das respetivas vendas para o mercado internacional (já depois deste encontro, veio a saber-se que A Herdade será o representante oficial de Portugal na candidatura a uma nomeação para o Óscar de melhor filme estrangeiro).
Mesmo não esquecendo a espantosa diversidade de autores que integram a lista de mais de duas centenas de filmes produzidos por Paulo Branco - Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Raúl Ruiz, Wim Wenders, David Cronenberg, etc. -, A Herdade começou por surgir aos olhos do público como um "projeto de produtor". Será que faz sentido identificá-lo como tal? "Na sua génese é, de facto, um projeto de produtor. Isto porque há alguns anos iniciei vários filmes a que tinha uma ligação pessoal mais direta."
Em qualquer caso, não era a primeira ocasião em que tal acontecia: "Várias vezes sugeri a um ou outro realizador que, por questões de oportunidade, fazia sentido avançar para um determinado filme - aconteceu com Manoel de Oliveira ou Raúl Ruiz, na certeza de que foram sempre projetos dos próprios. A Herdade nasceu quando Carlos Saboga estava a desenvolver o argumento de Mistérios de Lisboa [Raúl Ruiz, 2010]. Comecei aí a procurar alguém que pudesse trabalhar e transformar a minha ideia."
Que ideia era essa? Pois bem, antes do mais, uma aposta em revisitar um tempo específico, pré-25 de Abril: "São situações a que eu próprio assisti, antes e depois da Revolução, sem esquecer que fui para França em 1971. O que me fascinou foi a possibilidade de fazer um retrato da vida nos latifúndios em Portugal, retrato que estava em grande parte por esboçar, mesmo tendo em conta que José Cardoso Pires já tinha abordado esse universo no romance O Delfim [1968]. Vivia-se um tempo fora da realidade, que era também um tempo fora dos padrões europeus. Foi, aliás, por isso que parti: senti que aquele era um mundo que, inevitavelmente, iria acabar."
São memórias, afinal, de alguém que experimentou as contradições desse mundo de modo ambivalente: "Vivi, ainda adolescente, depois jovem adulto, sem pertencer diretamente a tal mundo, mas conhecendo-o através de amizades familiares. Digamos que eu era um deles sem ser um deles... Tinha um olhar com um distanciamento que, em princípio, quem pertencia a esse mundo não teria."
"Como se costumava dizer, havia a sensação de que vivíamos fora daquilo que se passava para lá dos Pirenéus", recorda Paulo Branco, embora não aceitando que isso se esgote num retrato maniqueísta de si próprio e do país: "Não posso deixar de dizer que fui muito feliz naquele tempo, sendo certo que aquilo que acontecia me ia dando consciência de muitas outras coisas." Feliz? Não é uma palavra que integre as visões políticas que tendem a demonizar tudo o que então vivemos: "Fui extremamente feliz. É um tempo de que guardo recordações únicas e também amizades únicas, que permanecem muito fortes - o que não impedia que desejasse descobrir outros horizontes."
Havia também o perigo de ceder aos clichés de representação da própria vida num latifúndio: "Era importante evitar situações mais folclóricas como, por exemplo, a relação com os touros e, sobretudo, a faceta marialva de algumas personagens com que me cruzei nessa época." Questão de produtor, sem dúvida: "Era importante que o filme tivesse uma dimensão universal."
E aí surge a palavra-chave: melodrama. Não no sentido pejorativo que o senso comum, muitas vezes, lhe atribui. Ou seja: falamos do género clássico em que reconhecemos uma intensidade "poderosa" a pontuar as convulsões, ruturas e reencontros das relações homens-mulheres: "O filme acompanha a transformação de um mundo quase feudal, passa pela Revolução e chega aos tempos do neoliberalismo. Nessa evolução, gerou-se uma energia incrível que deu visibilidade a sentimentos e frustrações que existiam no interior das famílias, por vezes de forma destruidora, outras verdadeiramente libertadora. Aconteceu com filhos, pais, mães, amantes... É daí que vem o melodrama."
Num tempo em que para muitos espectadores, sobretudo mais jovens, a produção cinematográfica americana se define apenas através dos blockbusters de super-heróis que, de três em três meses, são injetados no mercado mundial, Paulo Branco não esquece a nobreza clássica de Hollywood - e, em particular, a sua gloriosa tradição melodramática. Tal memória foi mesmo marcante na relação de trabalho com o realizador: "Conversámos sobre dois ou três exemplos de filmes em que a figura central acaba por destruir o seu universo familiar, sem ter noção das consequências dos seus atos. A referência fundamental foi Vincente Minnelli, nomeadamente um filme como Home from the Hill [A Herança da Carne, 1960], com Robert Mitchum. Depois, o guião foi-se construindo com o Rui Cardoso Martins. A partir daí, o Tiago Guedes apropriou-se da história, fazendo o seu filme."
Em trânsito, de facto. Agora e sempre. E depois de 1971, depois de 1974? Que aconteceu quando voltou a Portugal... mas Paulo Branco interrompe a própria formulação da pergunta: "Eu nunca voltei!" Acrescentando um esclarecimento paradoxal: "Digamos que agora estou a voltar mais."
Que aconteceu, então? "Toda a minha atividade como exibidor e produtor começou em França. Vivi uma história de amor com Paris, mas vim sempre a Portugal com regularidade... Só a partir de 1979-80, com as primeiras produções em Portugal, é que passei a dividir o meu tempo entre Paris e Lisboa. Agora estou mais por cá, inclusive por razões pessoais e familiares."
Produtor português mais ligado ao cinema francês? Ou produtor mais francês que português? Para Paulo Branco, os rótulos não se adequam à sua trajetória: "Para mim, cada filme é uma aventura, não tem uma nacionalidade precisa. Por exemplo, entre os filmes com Manoel de Oliveira, há uns feitos cá, outros em França, há filmes falados em português, outros em francês. O mesmo se pode dizer quando trabalho com cineastas como Wim Wenders ou David Cronenberg... Em cada projeto aquilo que me mobiliza é saber se o posso tornar uma realidade e, nessa medida, se lhe posso trazer algo de interessante. E ainda se o realizador com quem estou a trabalhar me interessa e também, claro, se eu lhe posso interessar - não é uma simples questão de nacionalidades, depende do espaço em que tudo acontece e do prazer de estar envolvido."
Na prática, o produtor pode funcionar como promotor de relações de colaboração. Por exemplo, Paulo Branco recorda que há também uma dimensão eminentemente pessoal em Cosmopolis (2012), já que, pensando na transposição do livro de Don DeLillo para filme, foi ele que promoveu o encontro de Cronenberg com o escritor - e o filme rodou-se, não em França ou em Portugal, mas no Canadá, país de Cronenberg.
"No fundo, tudo depende da relação com um realizador. O caso de A Herdade terá sido um pouco diferente, já que fui eu a ir buscar um realizador para tratar um determinado tema, tendo também na fase final sugerido o nome de Roberto Perpignani para a montagem." De resto, Paulo Branco faz questão em explicitar que nunca colocou, nem colocará, o seu nome no genérico de um filme com outra função que não seja a de produtor. A Herdade não é uma exceção: "A escolha dos atores, a evolução do argumento e, claro, a realização, tudo tem que ver com o Tiago Guedes - este não é um filme de Paulo Branco, é um filme de Tiago Guedes."
Títulos como O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982), A Cidade Branca (Alain Tanner, 1983) ou Vale Abraão (Manoel de Oliveira, 1993) são referências emblemáticas na trajetória de um produtor que resiste a ser definido como um mero "angariador de meios", assumindo antes o estatuto clássico de "independente". Com o seu próprio didatismo: "A intervenção do produtor deve ser discreta, o que não significa que não participe também na organização do processo criativo - deve funcionar como aquilo que eu gosto de chamar o princípio da realidade. Penso que dos filmes que produzi muitos poderiam existir sem mim, mas seriam, talvez, diferentes."
Nestes tempos de aceleradas transformações da produção e difusão cinematográfica (com o protagonismo recente, mas fortíssimo, das plataformas de streaming), será que ainda há espaço para essa maneira de ser independente? A urgência da partida para Toronto deixa o possível desenvolvimento da conversa para outra oportunidade, mas é claro que Paulo Branco não encara com otimismo a crescente burocratizarão das formas de financiamento do cinema na Europa. Que fazer? "Tirar os burocratas dos circuitos de decisão." Já à procura da mala para Toronto, ele próprio formula a pergunta que se impõe: "Será que isso é possível na Europa?"