A guerra quente
O mal-estar entre a Rússia e a Ucrânia tem longa história, tendo sido intensificado pela intenção da Ucrânia de se juntar à NATO - e reconfirmada a 14 de fevereiro deste ano pelo embaixador ucraniano no Reino Unido -, organização que a Rússia considera hostil. Há cerca de uma década, quando os ucranianos manifestaram vontade de vir a aproximar-se da União Europeia, com Moscovo a pressionar para que tal não acontecesse, essa tensão renasceu.
A relação entre as duas nações tem-se desenrolado numa paz podre, sobretudo depois da anexação da Crimeia em 2014 e das revoltas separatistas pró-russas no leste da Ucrânia. Putin nunca digeriu completamente a intenção de ocidentalização dos governantes de Kiev e a Europa nunca aceitou o automatismo de considerar certas regiões destinadas à influência russa. Numa espécie de posição geográfica tampão, a Ucrânia foi gerindo o seu caminho, entre as oportunidades e as ameaças dos vizinhos.
Agora o mundo gelou, incrédulo. Está perante um conflito armado que chegou sem anúncios oficiais, sem a tradicional declaração de guerra, sem sirenes a tocar. Passo a passo, o regime de Putin foi avançando com militares para as zonas de fronteira e rindo-se perante a civilização ocidental que, sucessivamente, foi acreditando que tudo não passaria de um exercício militar ou de uma demonstração de força.
Passo a passo, Putin foi inteligentemente movimentando as peças num jogo de xadrez perigoso e tático, mesmo debaixo do nariz de todos os povos e organizações internacionais. Cada peça que, nos últimos tempos, moveu em cima do tabuleiro representou uma tomada de posição crítica na Ucrânia. Primeiro, foram as províncias de Donetsk e Lugansk, cuja independência foi reconhecida por Vladimir Putin, e agora ninguém trava o novo czar.
Em fevereiro de 2022, assistimos à russificação forçada da Ucrânia. O ataque russo começou com explosões em várias cidades, com registo de mortos, incluindo cinco que estavam a bordo de um avião militar que caiu perto de Kiev, a capital. A Rússia avançou também sobre a antiga central nuclear de Chernobyl. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, considerou este avanço "uma declaração de guerra à Europa". Enquanto o mundo vai reagindo e decidindo sanções, nenhuma delas com efeitos imediatos - a menos que se atue sobre o sistema de transferências financeiras SWIFT, bloqueando-o como se antevê -, Putin ganha terreno. Zelensky impôs a lei marcial em todo o país. Decretou a mobilização de todas as pessoas com idade para servir no exército.
O dia de ontem entrou para a história que vai ser ensinada aos nossos filhos e netos e que perguntarão: afinal por que razão começou a guerra? Se a guerra fria foi marcada pela tensão em redor da polarização Estados Unidos-União Soviética, na atual guerra quente os extremos passaram das palavras às armas, colocando a Europa, de novo, no centro do furacão bélico.
Depois de uma pandemia violenta que assolou a humanidade durante dois anos, ninguém ficará imune ao conflito militar Rússia-Ucrânia. Este ato de agressão poderá, a prazo, ameaçar a integridade territorial da Europa caso se estenda a outras regiões, bem como irá provocar um forte abanão na economia e nos regimes democráticos que conhecemos e em que vivemos. Apesar de Kiev estar a 4095 quilómetros de Lisboa, ninguém ficará imune a esta guerra. As consequências chegarão a Portugal sobretudo pelos motivos económicos, incluindo a instabilidade dos mercados financeiros, a inflação a aumentar, a subida das taxas de juro e uma escalada ímpar dos preços da energia. Se já arriscávamos lidar com uma tempestade perfeita, agora será mais que perfeita.