A guerra e os impactos de longo alcance 

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As imagens de horror e de destruição que temos visto em várias cidades ucranianas, com destaque, nos últimos dias, para a barbárie perpetrada em Mariupol, ilustram um enorme flagelo humanitário, sem precedentes na Europa desde a 2.ª guerra mundial. Nestas quatro semanas de guerra, foi patente a convergência dos cidadãos europeus na partilha de um sentimento de repudio face à agressão russa, assim como nas expressões de solidariedade com o povo ucraniano. Por outro lado, também têm sido claramente percecionadas, por parte dos cidadãos europeus, as consequências deste conflito nos preços da energia e dos alimentos na UE. Paradoxalmente, apesar das muitas horas que no espaço público se tem dedicado à discussão do conflito, este ainda é apresentado como tendo consequências essencialmente regionais (europeias), persistindo uma leitura muito limitada das consequências desta guerra, que já é mundial nas suas consequências humanitárias e económicas.

No plano humanitário, além da perda de milhares de vidas, pelo menos 10 milhões de pessoas foram forçadas a fugir da guerra (mais de 6,6 milhões para outras zonas da Ucrânia e mais de 3,3 milhões enquanto refugiados na Polónia, Hungria, Moldávia, Roménia e Eslováquia). Mas as consequências humanitárias desta guerra extravasam largamente o contexto regional. Tendo em atenção o enorme peso, a nível global, dos produtos energéticos e alimentares provenientes da Rússia e da Ucrânia, os cidadãos dos países mais pobres serão fortemente penalizados pela escassez e agravamento dos preços daquelas commodities. Note-se que cerca de 25 países africanos importam mais de um terço dos cereais (em especial, trigo) a partir da Ucrânia e da Rússia. Esse valor atinge 90% no Líbano e 75% na Líbia. Na região africana do Sahel, a insegurança alimentar atingiu o seu nível mais alto de sempre, estimando-se que mais de 35 milhões de pessoas enfrentem o flagelo da fome nos próximos meses. Sendo que, como referiu a Agência Internacional de Energia, também serão os países em vias de desenvolvimento a enfrentar os maiores efeitos do agravamento dos preços da energia.

Por outro lado, são já bem patentes as implicações desta guerra para a economia global (numa fase em que, ainda não recuperados da pandemia, já enfrentávamos a escalada da inflação). O relatório publicado na passada semana pela OCDE antecipa que - atendendo aos efeitos da guerra no mercado financeiro, dos produtos energéticos, dos alimentos e dos minerais - haverá, em 2022, uma redução em 1 ponto percentual do crescimento económico previsto (+4,5%) e um aumento da inflação em 2,5 pontos percentuais face ao previsto.

Neste contexto é essencial que a comunidade internacional e os governos assumam as suas responsabilidades no apoio humanitário à Ucrânia (antes mesmo da fase de reconstrução). Primeiro, assegurando todo o apoio de emergência que é considerado imprescindível. Infelizmente, até ao momento, não se foi além de 17% do financiamento previsto para a gestão da crise dos refugiados e de 36% do financiamento previsto para a proteção das populações vulneráveis que permanecem na Ucrânia. Segundo, garantir o acolhimento dos refugiados ucranianos, desenvolvendo políticas de integração plena, através do acesso à educação, ao emprego e a condições de sustento económico e de qualidade de vida. Terceiro, não tendo desaparecido ou abrandado os efeitos das outras crises que afetam os países em vias de desenvolvimento - alterações climáticas, pobreza, desigualdades, fome, conflitos, pandemia - e sabendo-se dos efeitos que a crise da Ucrânia terá na economia global e nas populações mais vulneráveis, importa garantir que o financiamento à gestão da crise humanitária na Ucrânia é adicional e que não será desviado de outras crises e de outros países frágeis.

Num tempo em que as crises globais se vão sucedendo a um ritmo nunca visto, impõem-se uma aceleração da solidariedade internacional, em prol da justiça, da segurança e da sustentabilidade.

Diretor da Cooperação para o Desenvolvimento, OCDE

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