Uma das principais características dos conflitos bélicos modernos, sobretudo a partir de meados do século XIX, é o esbater de fronteiras entre identidades civis e militares. A invasão da Ucrânia pela Rússia, a 24 de fevereiro de 2022, tem-nos mostrado, diariamente, os impactos transnacionais e locais desta invasão numa região da Europa, de cujas cidades o mundo apenas tinha um conhecimento vago e difuso. Contudo, é a partir desta interceção entre processos globais e manifestações locais que é possível analisar os impactos internos dos conflitos, numa escala global, identificando conexões, relações e interconexões que transcendem as redes nacionais, como a onda crescente de solidariedade e de ajuda humanitária a que temos assistido desde Lisboa, Nova Iorque ou Tóquio, se tem encarregado de demonstrar..Recentemente a revista Time utilizou o título "The Return of History" para dar capa à sua edição de março, analisando a estratégia de Vladimir Putin, e a invasão da Ucrânia. A forma simplista do título remete-nos imediatamente para um debate iniciado na década de 90 do século XX por Francis Fukuyama, em que se analisava o suposto fim da história, associando-o ao triunfo da democracia ocidental após a queda do Muro de Berlim, contudo, a profecia de Fukuyama não só não se cumpriu, como o título escolhido pelos editores da Time serve, apenas, para revelar que a história não pode ter regressado, pois ela nunca deixou de estar presente. Na verdade, o argumento de Fukuyama de uma vitória global das democracias liberais encontra-se, também, como o atual conflito se tem encarregado de demonstrar, ainda por cumprir..A capa da revista norte-americana serve sim para evidenciar que a história e os historiadores podem desempenhar um papel importante na prevenção de alguns dos conflitos que atualmente continuam a assolar o mundo; o acesso aberto a arquivos e a dados de natureza histórica, pela democratização do conhecimento que personificam, representam uma importante ferramenta, uma vez que é, muitas vezes, a manipulação e a insuficiência do saber que contribuem para tornar as sociedades mais vulneráveis e permeáveis ao uso indevido de narrativas históricas, realidade que o atual conflito tem, também, colocado em evidência..A história, em particular, e as humanidades em geral, devem ser encaradas como um dos bens comuns mais poderosos do mundo, sobretudo numa conjuntura como aquela em que atualmente vivemos; marcada por uma sociedade polarizada, uma era de big data e fake news, em que o detalhe do conhecimento, a capacidade de questionar e desenvolver pensamento crítico são ferramentas essenciais à contemporaneidade, contribuindo para que as humanidades surjam como um bem público. Neste sentido, a cultura histórica tem de ser encarada como uma ferramenta essencial para a compreensão dos principais problemas da atualidade: fundamentalismo, terrorismo, racismo, fascismo, desafios globais prementes, que não podem ser resolvidos com recurso a tecnologia..Em 2050 se à realidade da guerra juntarmos os impactos de uma população desalojada pelas alterações climáticas, o mundo contará, então, com 25 milhões de migrantes. Os efeitos combinados deste desalojamento, aliados à crescente desigualdade provocada pelo aumento do desemprego e pelo acréscimo do preço dos bens alimentares e dos combustíveis, tornarão o mundo mais vulnerável e criarão as condições para um aumento dos níveis de violência e conflitualidade. Em 2015, segundo dados do Global Peace Index, o impacto da violência na economia foi estimado em 13,6 biliões de dólares, o equivalente a 13,3% do Produto Interno Bruto mundial..O conflito a que a Europa tem nos últimos dias assistido mostrou-nos que num contexto de risco e incerteza, na luta diária contra a violência e o extremismo, os civis constituem a maioria das vítimas, para os historiadores que se dedicam a analisar os impactos das guerras na sociedade, a reconstrução das emoções e das vivências, de quem fica e de quem parte, deixando tudo para trás, é o elemento que contribuiu para dar proximidade à guerra, permitindo "reconstruir" o mundo individual em que ela, na sua voragem destruidora, se vai desenrolando ao longo dos dias..A história deve servir, acima de tudo, como um "compromisso social" um "dever cívico", surgindo, na linha do que muitos historiadores têm, mais recentemente, definido como uma ferramenta capaz de promover o diálogo e a reflexão. Como Liev Tolstói deixou claro no romance Guerra e Paz qualquer conflito deve ser apreendido a partir, também, dos comportamentos individuais dos diferentes atores sociais, uma vez que o nosso conhecimento relativamente à guerra é sempre mediado - filtrado - e é esta mediação que acaba por tornar possível entender que a ideia por trás de qualquer mobilização não deve ser restrita, apenas, a um processo militar e económico, mas analisada como um processo cultural e político, capaz de envolver toda a população.. Professora da Universidade dos Açores. Investigadora de História, Territórios e Comunidades - CFE Nova FCSH.