A geringonça alemã
O trabalho de um correspondente é uma mistura de jornalismo com tradução. Como jornalista de rádio uso sons, discursos, declarações e análises em grande maioria na língua portuguesa, o que me exige diretamente a tradução do português para o alemão, isto para que o ouvinte alemão entenda na íntegra o que se passa em Portugal. Traduzir no contexto do jornalismo ou da literatura não se resume à habilidade de saber usar um dicionário. Tem que haver um vasto conhecimento da cultura e da língua do país de onde vem a expressão, e um conhecimento ainda mais vasto da língua materna.
No entanto, a todos os tradutores chega uma expressão ou uma palavra que se apresenta como um obstáculo linguístico quase insuperável. A última vez que me aconteceu isso foi no outono de 2015 e a palavra era "geringonça". Mesmo a viver em Portugal e no meio de portugueses há cerca de uma dúzia de anos, nunca tinha ouvido o termo. E depois de perceber (mais ou menos) o que é que significava, não havia como traduzir esta palavra para o alemão. Podia ter usado a descrição "o governo socialista minoritário apoiado em algumas decisões, mas não em todas, pelos comunistas, pelos Verdes e pelo Bloco de Esquerda", mas corria o risco de perder a atenção do ouvinte alemão no meio da expressão. Decidi usar "aliança de esquerda", um termo que não é completamente correto, mas que mantém a sua atualidade, pelo menos dentro de Portugal. Depois das últimas eleições as coisas mudaram na Alemanha. Agora sei que uma geringonça não tem de ser necessariamente "de esquerda".
Depois de um resultado catastrófico nas eleições gerais (20,5%), o SPD vai curar-se da ressaca na bancada da oposição. Além disso, com a nova direita nacionalista AfD e com o partido da esquerda Die Linke (com raízes no SED, o antigo partido do poder da Alemanha do Leste), o novo Bundestag conta com dois partidos que não são considerados opções credíveis para formar parte de um governo e que juntos têm mais deputados do que o SPD. A única solução governativa que resta para prevenir que o bloqueio político na Alemanha e na Europa continue é a chamada coligação Jamaica. Só para esclarecer de antemão: o nome não vem da perspetiva de ver Angela Merkel a fumar charros e a tocar No Woman no Cry na próxima reunião do G20, mesmo que essa visão de peace and love pudesse contrapor a atitude dos Trumps e Putins e Erdogans que tentam transformar o nosso mundo num campo de luta de galos machistas.
A geringonça alemã junta o partido conservador CDU de Merkel (de cor preta) com os liberais (amarela) e os Verdes, sendo que essa combinação de tonalidades se encontra também na bandeira da Jamaica. Tal como aconteceu em Portugal com socialistas e comunistas, uma aliança entre o CDU e os Verdes era no passado completamente impensável. Em 1983, quando os Verdes entraram pela primeira vez no Bundestag, bastou a sua forma de vestir (ténis e suéter de lã) para manifestarem a sua rejeição à elite política que tinha estado no poder desde a Segunda Guerra Mundial. Obviamente, os Verdes fazem há muitos anos parte de governos de coligação ao nível regional e nacional, e até já vestem fato e gravata: a alma rebelde foi desaparecendo.
No entanto, algumas diferenças ideológicas persistem entre o CDU e os Verdes, sendo a mais importante a questão dos refugiados. Muitos conservadores, especialmente da Baviera, temem perder mais eleitores a favor do partido da extrema-direita AfD, se não fugirem da política das portas abertas que Angela Merkel impôs no verão de 2015, para evitar uma catástrofe humanitária. Por sua vez, os Verdes vão ter dificuldades de explicar ao seu eleitorado uma política de migração mais restrita, uma vez que o sonho de uma sociedade multicultural se mantém vivo num partido que tem as suas raízes na revolução liberal da geração de 1968.
Em Portugal, a geringonça formou-se essencialmente ao redor de um slogan: acabar com a austeridade. Na Alemanha, os conservadores, os liberais e os Verdes podem até ter alguns projetos em comum, mas à coligação Jamaica falta sobretudo uma ideia geral e simples que os una, para que os alemães e os europeus possam imaginar o que os espera no futuro próximo.
Jornalista alemão, a trabalhar em Portugal para a Deutschlandfunk