'A Fuga das Galinhas 2': missão 'Happy Meal'

Estão de volta as poedeiras dos ovos de ouro da Aardman. Disponível na Netflix, sem passar pelos cinemas, <em>A Fuga das Galinhas: Estamos Fritas</em> chega tarde, mas nem por isso a más horas - vem a tempo de animar o Natal caseiro. E não é a única produção dos estúdios britânicos que vale a pena (re)descobrir no <em>streaming</em>.
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Foi há 23 anos que Chicken Run, a primeira longa-metragem da Aardman Animations, provou ao mundo que os bonequinhos em stop-motion são tão capazes de gerar blockbusters como qualquer grande produção. Com uma receita global de 225 milhões de dólares, foi e continua a ser a mais bem-sucedida animação do género - um estatuto assegurado não só pela bilheteira, mas também pela crítica, que lhe valeu a defesa de muito boa gente na corrida aos Óscares... malgrado na altura não existir a categoria de animação, para além das curtas-metragens.

É verdade que na década anterior A Bela e o Monstro da Disney tinha alcançado a proeza de uma nomeação para Melhor Filme, a categoria de topo, mas os fenómenos raros raramente acontecem. E consta que foi mesmo a consciência da injustiça a respeito de Chicken Run o motivo por trás da criação, no ano seguinte, da categoria que começou por consagrar Shrek (2001), e mais tarde outro filme da Aardman (de que já falaremos). O certo é que as bicadas dos galináceos de barro deixaram marca. Aliás, pode dizer-se que a eles se deve o reconhecimento feito ao cinema de animação depois desse ano zero.

Em português chamado A Fuga das Galinhas, o filme que levou os estúdios britânicos para outro patamar tem agora uma sequela assinada por Sam Fell, realizador que "substitui" a dupla Peter Lord e Nick Park à frente do célebre bando de aves proativas (entre elas, um galo outrora com a voz de Mel Gibson) que conseguiu escapar de uma quinta em Yorkshire, aí parodiando-se um dos êxitos maiores do cinema de guerra e aventura dos Anos 60, A Grande Evasão.

Em Chicken Run: Dawn of the Nugget/A Fuga das Galinhas: Estamos Fritas, por sua vez, vamos encontrar essas mesmas galinhas a viver numa espécie de ilha paradisíaca, que curiosamente não está muito longe de uma forma de prisão, na ideia da própria filha dos heróis do filme original, Ginger e Rocky, responsáveis pelos seus genes de rebeldia e desejo de liberdade...

O que ao início aparenta ser um conto de amadurecimento converte-se, passados uns minutos, numa imitação burlesca dos thrillers de espionagem na linha de Missão: Impossível. A saber, a nossa pequena heroína - uma autêntica adolescente saída da casca -, decide que está na hora de explorar a vida fora das quatro paredes invisíveis daquela ilha e aventura-se até à estrada mais próxima, onde rapidamente é atraída para uma carrinha colorida que a leva até um centro ultra tecnológico, com um vasto parque artificial no seu interior, que parece a Barbielândia das poedeiras. Aí elas são transformadas em nacos de carne zombies e dóceis, prestes a passar à etapa final do nugget que se destina a qualquer cadeia de fast-food. (É de imaginar que alguém não vá achar muita piada à brincadeira. Lembram-se de Um Porquinho Chamado Babe? Fez muitos vegetarianos).

Como é óbvio, a desobediência de uma jovem galinha serve apenas de desculpa para a ação: Ginger, Rocky e companhia arranjam um plano para entrar em território inimigo e salvar a sua criança. Só não lhes passa pela crista quem lá vão encontrar do outro lado da maquinaria sofisticada.

Sem espanto, A Fuga das Galinhas: Estamos Fritas não está ao mesmo nível do seu antecessor, com aquele toque de comédia clássica, absurda e vibrante que se reconhece no selo Aardman. O fado das sequelas é quase sempre esse: o desmaio da qualidade. Mas também nada aqui envergonha. Sendo uma produção de engenho narrativo menos tenso, ainda assim tem piscadelas de olho a um estilo de ficção científica "antiga" (vejam-se os patos-robots adequados a um cenário de 007 do tempo de Sean Connery) que não deixa de sinalizar um contraste interessantíssimo entre o lado artesanal inerente aos bonecos de barro e o design mais lustroso do contexto tecnológico. O resto, bem, são penas do ofício.

Fundada em 1972, por Peter Lord e David Sproxton, pode dizer-se que a Aardman Animations só começou a tornar-se um caso sério de visibilidade internacional pouco antes dos Anos 1990, quando um novo talento, Nick Park, venceu um Óscar pela curta-metragem Creature Comforts. Mais tarde, essa curta daria origem a uma série em que vários animais são entrevistados com vozes de pessoas a falarem das suas condições de vida - uma sobreposição muito engenhosa que ainda antes chegou a ser usada numa campanha publicitária de eletricidade no Reino Unido.

Seja como for, não há nada que se compare à criação de Wallace & Gromit, também de Nick Park, cuja curta inaugural, A Grand Day Out/Um Dia de Folga, esteve nomeada para o Óscar no mesmo ano (1991) em que Creature Comforts levou a estatueta para casa!

Dupla maravilhosa da animação fotograma a fotograma, o inventor Wallace e o seu cão Gromit representam a delícia máxima de um humor britânico que parece vindo dos recônditos de uma alma gentil, com meticuloso sentido de caos. Um pouco à imagem do seu criador, que numa conversa com o DN, em 2018, nos expressava a vontade de regressar a essas personagens, com um universo então composto por mais três curtas (duas oscarizadas) e uma longa-metragem, Wallace & Gromit: A Maldição do Coelhomem (2005), que deu aos estúdios de animação sediados em Bristol o tão merecido Óscar pelo formato que, no início do milénio, tinha sido um entrave para A Fuga das Galinhas.

Uma certeza: Wallace e Gromit vão mesmo regressar em 2024, numa longa-metragem, ainda sem título, realizada pelo próprio Nick Park e Merlin Crossingham para a Netflix.

Uma dica: todas as curtas desta dupla estão disponíveis na plataforma Filmin.

É também à Aardman e à imaginação de Nick Park que se deve o sucesso Ovelha Choné. Vimo-la pela primeira vez na curta Wallace & Gromit: A Close Shave/No Fio da Navalha (1995), em jeito de aparição graciosa no meio de um enredo de lãs, e Park, o criador, percebeu que estava ali um novo conceito por explorar. Seguiu-se a famosa série televisiva e a inevitável transição para o grande ecrã, com os títulos A Ovelha Choné - O Filme (2015) e Farmageddon/A Quinta Contra-Ataca (2019), este último uma fabulosa homenagem à ficção científica nos termos de Spielberg, com uma alienígena chamada Lu-La a fazer as vezes do E.T. amigo de Elliott.

Dica: à semelhança de Wallace & Gromit, as curtas da Ovelha Choné encontram-se na Filmin. Estão também disponíveis os filmes, na Prime Video, e a série Aventuras na Quinta (2020), na Netflix.

Em matéria natalícia, a Aardman tem os seus trunfos específicos da época (todos no catálogo da Netflix). Desde logo, Arthur Christmas (2011), uma história que põe o filho mais novo do Pai Natal em trabalhos no dia da entrega de presentes às crianças - foi a primeira animação digital destes estúdios conhecidos pela arte stop-motion.

Uma proposta doce, mas não tão doce quanto a curta Quem és Tu, Robin? (2021), um conto sobre um passarinho, criado por uma família de ratos, que quer pedir um desejo a uma estrela de Natal. Fábula a meio-caminho entre Mogli e Dumbo, que ainda assim consegue ser superada em diversão pelo especial televisivo A Ovelha Choné: Um Voo Antes do Natal (2021), perfeita aventura de consoada, com as amigas de Choné perdidas entre um mercado de Natal e uma casa moderna, que acaba com o resgate num trenó voador... Toda uma coreografia humorística cuja inteligência e conforto dispensam o uso da palavra. É uma questão de balidos e lã.

Quanto à notícia, de há poucas semanas, que deu conta da falência dos fabricantes que forneciam o barro modelar preferido da Aardman - informação que inquietou os fãs nas redes sociais -, os estúdios britânicos, emocionados com o apoio sentido, já vieram tranquilizar o mundo da animação através de um comunicado: "Não há absolutamente nenhuma necessidade de se preocuparem. Temos altos níveis de stock de barro para atender às produções atuais e futuras e, tal como Wallace na sua oficina, temos trabalhado nos bastidores desde há algum tempo com planos em vigor para garantir uma transição suave para novos stocks, a fim de continuar a criar as nossas produções icónicas."

Recorde-se que em 2005 a Aardman perdeu uma grande parte do seu material de arquivo num incêndio que destruiu um armazém em Bristol. Não será a insolvência de um fornecedor de barro a provocar um golpe maior na estrutura criativa de um estúdio que tem deixado uma marca tão especial no panorama da animação, como sinónimo da própria técnica stop-motion. Esta história é para continuar.

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