A França só pode vir a ser outra

A primeira volta das eleições mudou a política em França: os partidos tradicionais naufragaram. O que vem aí não se sabe
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Dez minutos depois dos resultados da primeira volta serem anunciados, o estúdio do canal de tv France 2 foi a imagem do momento de rutura que a França acabava de viver. Um dos convidados era Laurent Wauquiez, 42 anos, vice-presidente de Les Républicains (LR), o partido que apoiou François Fillon, o derrotado da noite. Mas a questão já era outra, a política não se compadece com feridos de batalhas: "Por quem chama a votar no dia 7? Macron ou Le Pen?", perguntou-lhe o jornalista. "Em nenhum", disse aquele que já foi porta-voz num governo de Sarkozy.

Na cadeira ao lado, Jean-Pierre Raffarin, 68 anos, também de Les Républicains, estava impassível. Logo a seguir, falou e explodiu: "O Front National é a violência, se ele está numa escolha, vota-se contra ele." E o velho gaulista lembrou que, há 15 anos, quando outro Le Pen, Jean-Marie, o pai da Marine agora semi-vencedora, passou à segunda volta, o gaulista Jacques Chirac recebeu o apoio dos socialistas e foi eleito. "Voto e apelo a votar contra Le Pen", repetiu Raffarin. E como todo o bom gaulista gosta de mostrar que os grande momentos nacionais impelem às grandes decisões pessoais, anunciou abandonar a vida partidária. Raffarin, que por causa da vitória de Chirac em 2002 se tornou primeiro-ministro.

Ontem foi um dia histórico. Os dois partidos pilares da V República, gaulistas (sob vários nomes) ou PS, deram todos os presidentes e primeiros-ministros franceses nas últimas seis décadas, todos. E o próximo presidente francês não será nem uma coisa nem outra. Emmanuel Macron, sem partido e jogando a carta do centrismo, e Marine Le Pen, da Frente Nacional, de extrema-direita, vão à segunda volta e um deles será escolhido presidente a 7 de maio. De ontem ainda não se pode dizer que foi o fim de um regime - embora se Marine Le Pen ganhar, sê-lo-á, com saída da UE e prováveis mudanças constitucionais. Mas já é certo que a França política será recomposta por um polo agregador mais à direita e outro ao centro.

O papel dos derrotados, gaulistas do LR e socialistas, na segunda volta das presidenciais conheceu-se de imediato. Com exceção de poucas vozes dissonantes, como a de Wauquiez, a direita alinhou com o apelo que o próprio François Fillon fez para se votar Macron. Fillon que nesta campanha teve derivas mais à direita, voltou ontem à noite a ajudar a fazer um cordão sanitário à volta de Marine Le Pen. Do lado dos socialistas, a adesão ao centrista Macron era mais garantida e foi. Também o derrotado candidato do PS Benoît Hamon apelou a votar em Macron.

Por antecipação, François Hollande, já durante a campanha criticara por várias vezes Marine Le Pen, e dissera que se a disputa na segunda volta fosse Fillon contra Le Pen, diria para se votar contra esta - embora, pelos baixos índices de popularidade do presidente francês, este apelo talvez não fosse prudente. Por outro lado, seja dos LR, seja do PS, vários dirigentes já se tinham, mesmo na primeira volta, bandeado para o campo centrista, por o julgarem mais capaz do que os candidatos dos respetivos partidos, Fillon e Hamon. Os mais notáveis apoios precoces a Macron foram de dois antigos primeiros-ministros, Dominique de Villepin (na presidência de Chirac) e Manuel Valls (na presidência de Hollande). Algumas destas deslocações (e seguramente a destes dois últimos) para Macron devem ser entendidas como pedras a marcar posição, não para a data presidencial de 7 de maio, mas para as legislativas de junho próximo.

Porque do lado dos socialistas a travessia do deserto é inevitável. A única boa notícia para o PS é que o resultado de Hamon, apesar de indigente (6 por cento), está acima da linha de água que permite ao partido receber 8 milhões de euros que o Estado dá aos candidatos que passem dos 5 por cento. Se estão ao abrigo da miséria, não vão escapar a fortes dissensões internas. Hamon tinha prometido no fim da campanha: "Bater-me-ei domingo e bater-me-ei depois." Não estava a falar das presidenciais. Ele que saiu, pela esquerda, do governo Hollande como "frondeur", atirador de pedras, contra as posições social-liberais deste, vai querer reconstruir o PS à esquerda. Nas legislativas, talvez com listas em conjunto com Mélenchon - o candidato radical de esquerda que chegou ontem em quarto lugar, e recusou escolher entre Macron e Le Pen. Por seu lado, Manuel Valls, que saiu de primeiro-ministro de Hollande para concorrer nas primárias do PS, perdeu e passou a apoiar Macron, vai tentar com que o PS seja aliado dos centristas nas legislativas, caso estes levem o seu líder ao Eliseu. Vontades dentro do PS há muitas, como costuma acontecer aos fracos que já foram fortes.

Quanto aos gaulistas, vimos como logo a seguir ao naufrágio de Fillon, ontem, surgiram vozes para se virar à direita. A reação imediata de Fillon e de outros tenores prestigiados, como Alain Juppé, já resolveu a questão da segunda volta, estarão contra Le Pen - embora à hora que este texto foi escrito, o silêncio de Sarkozy seja pesado... Em todo o caso, também para os gaulistas o prazo das legislativas é agora o mais importante. É perigosa a hipótese de Macron ser presidente, ter uma boa classificação em junho com uma lista centrista e escolher para primeiro-ministro um figura do centro-direita (fala-se de François Bayrou, eterno candidato centrista ao Eliseu que desta vez apostou no jovem Macron). Esse cenário, faria dos recém-chegados centristas as hienas a banquetear-se com os restos dos gaulistas feridos.

Esses os cenários de mudança funda abertos pelo que aconteceu ontem. Cenários suaves, porque repousam na derrota de Marine Le Pen. Ela, porém, não se dá por vencida e ontem até citou De Gaulle. Voz de sirene com que a extrema direita tenta convencer parte da direita. A acontecer, já não se trata de mudança e ontem passará a ter sido uma revolução. Muito má.

Enviado a Paris

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