A Forma da Água: Conto de fadas para tempos conturbados
No discurso de agradecimento do prémio de melhor realizador, na última cerimónia dos Globos de Ouro, Guillermo del Toro fez questão de sublinhar o seu respeito e fascínio pelos monstros. Via-se que estava comovido. Disse que desde criança lhes era fiel: "Fui salvo e absolvido por eles. Porque os monstros, acredito, são santos padroeiros das nossas felizes imperfeições." Palavras que refletem o pleno amor pelas criaturas que, filme a filme, vem somando ao seu universo, como peças essenciais de uma narrativa maior. "Monstros" que fazem sobressair a humanidade em cada um dos cenários imaginados pelo realizador mexicano - como, aliás, se vê explicitamente neste A Forma da Água, obra de topo do seu autor, com sérias possibilidades de, no próximo dia 4 de março, ganhar o Óscar principal.
Como que a garantir que o espectador viva a experiência segundo as leis do sonho, o filme começa debaixo de água, com uma narração em off que nos fala de uma princesa sem voz. Vemo-la flutuar na mesma medida em que somos embalados no conto de fadas prestes a instalar-se na realidade. Ainda sob encanto, vamos percebendo que essa "princesa sem voz" leva uma rotina matinal regrada e peculiar, mas com dias pouco extraordinários: trabalha como empregada de limpeza num centro de pesquisa aeroespacial, em Baltimore, arrastando o carrinho com a esfregona por corredores subterrâneos na companhia da sua única amiga. São os tempos da Guerra Fria, e é sob um paranoico clima de desconfiança que se ergue esta história de um homem anfíbio descoberto na Amazónia e levado em cativeiro para uma das instalações laboratoriais do centro.
É neste contexto que dois seres fantásticos - cada um à sua maneira - se descobrem: a bela Elisa (Sally Hawkins numa ternurenta composição), equipada com mais do que o habitual balde e esfregona, e o monstro aquático. Ela sente que a criatura não vê a sua mudez como uma imperfeição, e os seus encontros vão-se tornando graciosas sessões musicais, com discos de vinil e ovos cozidos para degustação, em que ela lhe ensina linguagem gestual e estabelecem uma química para lá da inteligência dos gestos. É um amor que nasce longe do olhar dos outros, e que se oferece à beleza da sua singular expressão.
Com A Forma da Água del Toro supera-se e alcança a sensibilidade que faltava na sua cinematografia, uma linha romântica que cruza todo o filme e o transporta para um plano poético ajustado com a realidade. Essa é a grande vitória de uma produção que arrisca a mesclagem de géneros - fantasia, melodrama, musical, noir -, com assumidos lugares-comuns, para oferecer uma viagem à própria alma do cinema. Veja-se a homenagem implícita a O Monstro da Lagoa Negra (1954), de Jack Arnold, e A Bela e o Monstro (1946), de Jean Cocteau, ou o manancial de referências que pontuam as cenas, de Shirley Temple a Fred Astaire, passando pela era do CinemaScope, que se reflete no ecrã de um cinema de bairro (por baixo da casa de Elisa), onde está a ser exibido os Amores de Ruth (1960), de Henry Kostar.
Também não faltam personagens-chave, como o vilão machista de Michael Shannon, o "homem bom" de Michael Stuhlbarg ou a amiga tagarela da protagonista, interpretada por Octavia Spencer. Mas é Richard Jenkins, no papel de vizinho e genuíno cúmplice de Elise, quem dá um dos mais bonitos contributos ao elenco, ao lado dessa fabulosa Hawkins que põe no olhar tudo o que não pode expressar pela voz. E o que dizer do monstro das águas?
Debaixo da espessa maquilhagem do homem (ou deus) anfíbio de A Forma da Água está Doug Jones, o ator, mímico e contorcionista que colabora regularmente com del Toro, desde Predadores de Nova Iorque (1997). Pode mesmo dizer-se que este mestre da linguagem corporal, sempre escondido atrás de elaboradas máscaras e próteses, será o maior representante do universo fantástico do realizador. Entre muitas outras, deu corpo a criaturas como o Homem Pálido e o mitológico protagonista de O Labirinto do Fauno (2006), mas também ao cortês e elegante ser aquático Abe Sapien dos filmes Hellboy, tendo nesse papel uma espécie de treino para o seu menos civilizado, mas dócil, monstro amazónico.
Perceber que Guillermo del Toro é um geek da série B é perceber neste trabalho artesanal das suas criaturas - por oposição ao fabrico digital - o gosto pela textura da imagem e a atenção aos ínfimos pormenores da fisionomia. Também por isso o homem anfíbio de A Forma da Água é tão sugestivo no toque e relação física com Elisa. Ele é um corpo húmido que brilha, cura e quebra a solidão de quem dele se aproxima.
Por sinal, a água é mesmo o elemento simbólico do filme, na substância, visualidade e forma narrativa: tudo flui pelo encanto que é lançado no início, e nos mantém suspensos sobre a realidade apresentada, até ao fim. Contribuem para isso as notas musicais de Alexandre Desplat e a direção de fotografia de Dan Laustsen, que respeitam o imaginário de del Toro e impulsionam o efeito de conto de fadas.
Sobretudo, A Forma da Água é o filme em que o realizador mexicano se revela capaz de nutrir o seu cinema de beleza interior, dando-lhe profundidade para lá da complexa produção. Faltava somar esta força textual - que se vislumbrou em O Labirinto do Fauno - à sinceridade e entusiasmo que têm sido o motor principal da sua obra. Aqui, a magia invade o quotidiano em jeito de poema. E numa deliciosa leitura das imagens, entra-se pela vida oculta dos versos.