A Filosofia e os filósofos
A Filosofia anda desvalida, não se sabendo muito bem qual o destino a dar-lhe concretamente no ensino secundário.
Este desvalimento é uma das manifestações maiores da nossa crise presente. A essa crise se referiu já o filósofo E. Husserl, em 1935, ao declarar que "as nações europeias estão doentes" e que "o maior perigo da Europa é o cansaço". Por isso, fazia apelo a uma filosofia capaz de uma "crítica universal de toda a vida e de todas as formações e sistemas culturais surgidos a partir da própria vida da Humanidade". E não se trataria de uma tarefa apenas de filósofos profissionais, pois o que se exigia era um "movimento comunitário de formação", com influência na cultura e na educação, em ordem a favorecer uma "atitude crítica, uma atitude que parte da recusa em assumir, sem questioná-las, opiniões e tradições previamente dadas e, ao mesmo tempo, sobre todo o universo tradicionalmente dado de antemão coloca a questão do verdadeiro". A Filosofia deveria transformar--se num "movimento educacional e cultural", fomentando a racionalidade e o diálogo crítico, na procura da verdade.
A Europa tem duas raízes fundamentais: a herança judaico-cristã e a herança helénica. Da primeira provém essencialmente a ideia de História. Da segunda veio-lhe o Logos, a capacidade de indagação radical da realidade e da existência. Frente ao mito, ergueu-se o pensamento racional autónomo e crítico, que não pergunta apenas por isto ou aquilo, mas pela realidade toda na sua raiz e verdade.
A interrogação permanentemente crítica é incómoda, de tal modo que Sócrates, que achava que a vida sem indagação racional não era digna de seres humanos, foi condenado a beber a cicuta. Platão e Aristóteles ensinaram que a origem da Filosofia é o espanto. Mas há o espanto positivo, na raiz do deslumbramento, que nos leva a exclamar: como é bom existir!, e o espanto negativo, na raiz do horror, por exemplo, perante Auschwitz, que nos faz gritar: como é possível? Precisamente da confluência do espanto nesta sua dupla face, frente à ambiguidade do mundo, nasce a pergunta filosófica por excelência: o que é o ser?, porque há algo e não nada?
Esta pergunta explicita-se nas famosas três questões de Kant: o que posso saber?, o que devo fazer?, o que me é permitido esperar? "À primeira responde a metafísica; à segunda, a moral; à terceira, a religião." Mas estas três perguntas "referem-se" a uma quarta: o que é o Homem?, a que responde a antropologia.
Percebe-se assim que, sem o perguntar filosófico - perguntar que se pergunta por ele mesmo -, o Homem não se ergue até ao seu modo próprio: racional e crítico frente à totalidade do real na sua raiz. O que seria, portanto, a Europa sem Tales e Parménides e Heraclito e Demócrito e Sócrates e Platão e Aristóteles e Santo Agostinho e Tomás de Aquino e Descartes e Hume e Kant e Espinosa e Hegel e Marx e Wittgenstein e Heidegger e Ricoeur e Habermas, entre tantos outros?
Mesmo entre nós a Filosofia não caminha na penúria do deserto. Presto homenagem a um dos grandes pensadores portugueses do século XX, Miguel Baptista Pereira, da Universidade de Coimbra, que ao longo do seu magistério marcou gerações de estudantes e docentes e que nos deixou no dia 5 deste mês de Março.
O seu filosofar situava-se no horizonte de uma hermenêutica ontológico-existencial, vivendo a sua meditação da complementaridade fecundante entre os problemas filosóficos de sempre e a atenção às condições do mundo de hoje.
Sem descurar o trabalho do conceito, colocou a filosofia no chão da experiência, meditando as grandes questões do tempo actual: a natureza, a evolução e a ecologia, o corpo, a linguagem, o símbolo, a gnose, os milenarismos e a utopia, a tecnociência, a secularização, os fundamentalismos, o niilismo e a esperança, os direitos humanos, a Europa, a História no seu reverso que são as vítimas, o homem ecuménico.
Nos tempos da ditadura, colocou-se do lado do combate pela liberdade. Viveu uma vida simples e pobre, porque paupertas et libertas (pobreza e liberdade) são irmãs gémeas, e a sua luta foi a da liberdade digna e da dignidade livre do Homem como pessoa, aberto à Transcendência.
Não fora o desprezo convicto que dedicava ao palco mediático da fama e seria amplamente reconhecido como "um dos maiores vultos da Filosofia em Portugal no século XX" (João Maria André). Miguel Baptista Pereira é na realidade figura cimeira do pensamento e da cultura em Portugal no século XX, e isso ver- -se-á concretamente quando se publicar a sua obra completa.