A felicidade vai desabar sobre os homens, vai

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Eu falava com um amigo brasileiro. Brincava com ele, um bocadinho com aquela mania de que é possível brincar com tudo... Eu brincava sobre um assunto, o presidente deles, convencido de que, sendo entre amigos, não havia acinte. E este, de facto, não me era cobrado pelo meu amigo. Mas vi-o triste. Percebi então o sentido daquela frase feita: não se fala de corda em casa de enforcado. Eu brincava sobre o calhau, aquele que não é só ególatra como Trump, mas burro, burro, como só ele, Jair Messias Bolsonaro.

Percebi ainda melhor esse desconforto brasileiro, ouvir Bolsonaro, nesta semana, quando vi o mais recente dos vídeos do humorista Gregório Duvivier, na sua série Greg News. Vídeos feitos com os poucos recursos do confinado feito em casa, mas com o talento de alta-cozinha do humor brasileiro, bebido em Millôr Fernandes. Já o temos visto por cá, a Gregório Duvivier, pois há um salutar compadrio dele com Ricardo Araújo Pereira, mas, antes disso, já ele se nos revelara na Porta dos Fundos, site da internet.

Justamente, nesta semana, a Porta dos Fundos fartou-se de fazer "anúncios oficiais" de novos ministros da Saúde brasileiros, escolhidos no meio da pandemia pela mais notória das razões: não ter a mínima ideia do que fazer com ela, a pandemia. No fim da paródia, suspira-se de alívio quando, no fim, no gabinete do novo ministro, se vê sentado à secretária e engravatado um cone, desses de plástico anunciando um buraco no trânsito. Oh, como seria feliz o Brasil com um cone ao leme da política de saúde. "Tá ali um vírus!", diria o desnecessário. Mas ao menos não avacalhando como Bolsonaro: o coronavírus é gripinha, juntem-se e beijem, vem cá abraçar para rezar juntos, tomem cloroquina...

Mas isso são piadas, boas como sempre as de lá, terra de diálogos de Luis Fernando Verissimo, de frases de Millôr, de conversa de botequim de Aldir Blanc... Aliás, este letrista acabava de morrer, com covid-19, numa leva, nem toda coincidente com a pandemia, que levou também o escritor Rubem Fonseca, o ator Flávio Migliaccio (os portugueses conheceram das novelas) e o músico Moraes Moreira. Guardem mais tempo para saber como nos livros de Fonseca se escreve com navalha afiada e alma seca mas, assim rápido, no YouTube, em 3:25 minutos, oiçam Elis Regina a cantar O Bêbado e a Equilibrista. Oiçam os versos longos, as palavras que nunca se ouvem em canções, de Aldir Blanc.

No meio da canção, qualquer coração empedernido entenderá o nível subido e único que os artistas brasileiros oferecem ao mundo e, sobretudo, aos ditosos que lhes conhecem a língua. Então, já perceberam o porquê do lá atrás citado episódio do Greg News, que está no YouTube, e de borla. Todos os episódios (cerca de meia hora) têm um assunto como título, e o deste é: "Leveza". Qual o quê, leveza... Violência, indignação, a revolta de Gregório Duvivier, cidadão!

Na semana em que cada dia carregava mais de mil mortos, mais o calhau fazendo piada, mais a tola que ele escolheu para a Cultura, envergonhando, Duvivier pôs luto no olhar como o meu amigo brasileiro. E brandiu-o estandarte, como o orgulhoso João Ubaldo Ribeiro à capa do seu livro: Viva o Povo Brasileiro. Greg aproveitou o confinamento e encontrou pérolas: vídeos mostrando os génios da arte brasileira, aos quais a tola não sentiu obrigação de homenagear.

Por favor, oiçam um humorista a falar da morte e da sua importância para nos sentirmos eu, a minha inevitabilidade, e nós, a nossa grandeza coletiva. Vejam Ariano Suassuna depois de velho, palmilhando o Brasil para contar quanto amava a sua língua, o português rico que tem vidro e copo, e não glass e glass. Oiçam a ternura de Jô Soares entrevistando um Zeca Pagodinho, tem nome de sertanejo não é?, falando de dialética.

No fim, Gregório Duvivier chama a mãe e os três irmãos e cantam uma canção de Tom Zé, baiano de violão e jardineiro em São Paulo, sobre "a felicidade vai/ Vai desabar sobre os homens, vai..." E logo sabemos que não é uma canção de embalar.

Olivia, a mãe de Greg, que é cantora lírica, põe uma suavidade sublime nas palavras lutadoras do conterrâneo imigrado. Nunca mais confundam o calhau com os brasileiros - povão e elite, um povo tão culto. Também a mim me põe triste, como me explicou um humorista maior.

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