Em Hemingway avulta uma misoginia profunda, uma inveja dos ricos e uma eterna mitomania. Ganhou o Nobel da Literatura em 1954, matou-se com um tiro em 1961..O Inverno não fora fácil. Durante os longos meses de Paris, pouparam o que puderam para poder regressar lá, ao Sul. Fizeram planos para ir às festas de Pamplona, em Julho, depois a Madrid e, por fim, às fallas de Valência..À semelhança do que tinham feito no ano anterior, no saudoso Verão de 1924, em que "bebemos tanto e ninguém foi desagradável", convidaram vários amigos a acompanhá-los. A selecção dos cúmplices, porém, não se revelou a melhor: com Ernest e Hadley foram Lady Duff Twysden e o seu amante, o bon vivant inglês Patrick Guthrie, os escritores Harold Loeb e Donald Ogden Stewart e Bill Smith, um amigo de juventude de Hemingway, que na altura passava uma larga temporada em Paris..No ano anterior, os Hemingways e alguns amigos tinham ido a Burguete depois das festas de Pamplona. Agora, no fatídico 1925, fizeram o caminho inverso, na companhia de Donald Stewart e de Bill Smith, mas, por falta de peixe ou por outra razão qualquer (ao que parece, as ribeiras estavam pejadas de troncos e de ramos cortados pelos lenhadores), a jornada de pesca nos Pirenéus não correu bem - e o melhor que dela resta ainda são algumas páginas de Fiesta, deslumbrantes e imortais..Não foi esse o retrato que Hemingway fez daqueles dias. Preferiu, como sempre, colorir a verdade agreste com as tonalidades róseas do mito. Numa carta a Scott Fitzgerald, escrita em Burguete, na véspera da partida para Pamplona, onde nada disse sobre o insucesso da jornada pelos Pirenéus, afirmou que, para ele, o ideal de paraíso seriam dois lugares na barreira para assistir a uma corrida de touros e um rio com trutas no qual ninguém mais fosse autorizado a pescar..No dia 2 de Julho de 1925, começaram as hostilidades. O grupo reencontrou-se no Hotel Quintana, onde Ernest e a mulher tinham conseguido hospedar-se um ano antes, muito a custo, pois era o local de eleição dos toureiros e dos seus apoderados e daqueles que se orgulhavam de possuir a afición autêntica, como Juanito Quintana, o dono do hotel, um dos maiores entendidos em touros de toda a Espanha, que ficará amigo de Hemingway para toda a vida..Se em 1924 tinha havido algumas picardias, carburadas pelo álcool e pelo machismo, agora, no Verão de 1925, os problemas sucederam-se, e começaram logo à chegada. Lady Duff tinha passado uns dias em Saint-Jean-de-Luz na companhia de Harold Loeb, o que enfurecera Guthrie, mas também Hemingway, que, estranhamente, ou talvez não, se mostrou-se tão ou mais incomodado do que o seu amante..Donald Stewart, que fizera parte do grupo do ano anterior, apercebeu-se da tempestade iminente. E, nas suas memórias (By a Stroke of Luck! An Autobiography, 1975), dirá que os sanfermines de 1925 nada tiveram a ver com os de 1924 pelo simples motivo de que agora tinha sido aberta uma fresta através da qual Eva penetrara no Jardim do Éden. Eva, claro, era Duff Twysden, que em Fiesta surge retratada como Lady Brett Ashley..Os incidentes desse estio perigoso já foram contados diversas vezes, e dois livros recentes tratam-nos ao pormenor: Hemingway en los Sanfermines, de Miguel Izu, que seguimos de perto nesta narrativa sobre a feira dos mitos, e Everybody Behaves Badly: The True Story Behind Hemingway"s Masterpiece The Sun also Rises, de Lesley M. Blume..O essencial, porém, está no próprio livro de Hemingway, naquela que foi, literalmente, a sua obra-prima. Logo nas primeiras linhas desse roman à clef, detecta-se o mal disfarçado ódio a Robert Cohn, o alter ego literário de Harold Loeb, com quem o escritor esteve prestes a andar à pancada em plena Festa de San Fermín. A culpa, é óbvio, foi da serpente à solta nos jardins do Paraíso: Hemingway não se incomodava que Duff tivesse amantes e até um caso tórrido com um toureiro, como a Brett da novela, que se apaixona perdidamente por um jovem matador de 19 anos, Pedro Romero; o que o irritava, acima de qualquer coisa, era a subserviência de Harold Loeb perante a diva, o facto de o amigo ter perdido a sua compostura e a sua dignidade e, a troco de uns breves instantes de atenção por parte da deusa, prestar-se a figuras ridículas, mais próprias de um adolescente imaturo do que de um homem feito..No retrato que faz de Robert Cohn, um aspirante a escritor de origem judaica devorado pela boémia parisiense, alguns já notaram laivos de anti-semitismo, mas o que parece mais certo é que aí avulta, uma vez mais, a misoginia profunda do autor de Fiesta, que o levava a desconsiderar não a mulher sedutora e sexualmente desinibida, como Duff/Brett, mas os homens que se deixavam subjugar pelos encantos da feminilidade, como Loeb/Cohn..Foi isso que levou Hemingway, numa tarde mais acalorada das festas de Pamplona, a insultar o seu companheiro de viagem, acusando-o de andar no encalço de uma mulher já tomada por outro, cena que levou os dois machos a sair do café onde estavam para se defrontar aos murros, em plena rua. Ambos tinham praticado boxe amador em Paris, tal qual se conta também em Fiesta, mas, ao prepararem-se para o duelo, Loeb disse que não queria partir os óculos, pois não tinha forma de os consertar em Pamplona, e Hemingway respondeu que também ele não queria estragar a festa reinante com uma cena pueril de pugilato. No dia seguinte, escreveu um bilhete a Loeb pedindo-lhe desculpas pelo sucedido, e o incidente ficou sanado. Ou talvez não. Numa espécie de vingança ao retardador, que não abona muito sobre as suas qualidades de carácter, Hemingway irá relatá-lo, com algumas liberdades criativas, na novela que andava a escrever..Harold Loeb, naturalmente, ficou furioso e, muitos anos depois, tentou contrariar o retrato caricatural que Hemingway dele fez em Fiesta. Num livro autobiográfico, intitulado, não por acaso, The Way It Was, saído em 1959, apresentou a sua versão dos acontecimentos: negou que tivesse andado atrás de Lady Duff; afirmou que foi ele que a rechaçara em Saint-Jean-de-Luz, quando ela lhe propôs partirem juntos para a América do Sul numa fuga louca; lamentou que, durante todo o tempo que passou nas Festas de San Fermín, tivesse tido de suportar a animosidade de Ernest Hemingway e de Patrick Guthrie..E, quanto a um ponto fulcral, o do romance escaldante entre a aristocrata inglesa e o toureiro Cayetano Ordoñez, El Niño de la Palma (o seu pai era dono de uma sapataria em Ronda com o nome La Palma), que inspirou o caso Lady Brett-Pedro Romero da novela, Loeb garantiu que o único contacto físico que ambos tiveram foi um casto aperto de mão à porta do hotel, quando o grupo dos expatriados de Paris se preparava para regressar a França..Ao contrário do que se possa pensar, Harold Loeb, a principal vítima daquele Verão perigoso de 1925, não era um qualquer e, mais do que isso, não era sequer um desconhecido ou um aspirante a escritor vivendo nas raias da miséria. Oriundo de uma das famílias judias mais ricas de Nova Iorque, sendo o pai um banqueiro bem-sucedido, sócio da próspera sociedade de investimentos Kuhn, Loeb & Company, e a mãe pertencente à dinastia Guggenheim (o que fazia dele primo direito da celebérrima Peggy Guggenheim), Harold Loeb formara-se em Princeton e, no pós-guerra, teve dinheiro suficiente para se tornar um dos donos da muito badalada livraria The Sunwise Turn, onde existia um salão literário a que acorriam com frequência vultos promissores das letras e da boémia, como Scott Fitzgerald, Robert Frost, a sua prima Peggy Guggenheim, entre tantos outros. Depois disso, fora um dos fundadores da Broom, uma revista de vanguarda onde colaboraram nomes como Picasso, Man Ray, Sherwood Anderson, William Carlos Williams, Juan Gris ou e.e. cummings. Não era um qualquer, longe disso..Ainda assim, Harold Loeb teria decerto razões para algum ressentimento. Voluntariara-se para a guerra, mas um defeito de visão impediu-o de ser mobilizado para combater, sendo obrigado a ficar na retaguarda, a trabalhar à secretária. Um ponto a menos no duelo existencial com Hemingway. Tinha muito mais dinheiro do que este, sem dúvida, mas Hemingway proferira um dia uma frase letal, que muitos dizem ser apócrifa, quanto ao poder das grandes fortunas. Quando Scott Fizgerald lhe disse, deslumbrado, "os ricos são diferentes de nós", Hem respondeu de forma cortante: "Sim, têm mais dinheiro." Em todo o caso, ele próprio se esforçaria para ser rico e, sobretudo no final da vida, apreciava muito a companhia dos endinheirados, especialmente dos aristocratas com títulos lustrosos, facto que ficará bem patente nos convivas que o acompanharam nas suas excursões por Espanha no pós-Segunda Guerra (outro mito em seu redor garante que, após a subida de Franco ao poder, Hemingway nunca mais atravessou os Pirenéus, o que é falso)..Naquela frase de Hemingway sobre os ricos há uma ponta de ressentimento, talvez mesmo de inveja, e os acidentes da sua relação com Harold Loeb também reflectem isso, sem dúvida. Mas reflectem principalmente, apesar de Hemingway considerar Loeb um idiota ou, no mínimo, um indivíduo vazio e desinteressante, a dor sentida por Duff continuar a bafejá-lo com a sua graça, indo com ele para Saint-Jean-de-Luz, respondendo aos seus constantes avanços, namoriscando-o frivolamente..Não é o que transparece no enredo de Fiesta, em que o protagonista e alter ego de Hemingway, Jake Barnes, é o homem que Brett verdadeiramente ama; na "vida real", como se costuma dizer, as coisas parecem ter sido diferentes, não existindo provas de que alguma vez Duff Twysden tenha amado Ernest Hemingway. Assim, Fiesta, entre muitas coisas, pode ser também uma expressão de rancor por parte de um homem preterido por outro, ou outros, e a mitificação do amor entre Jake e Brett pode constituir não mais do que um grito de despeito de Ernest Hemingway.>.Ha.dley, naturalmente, não achou graça às investidas do marido sobre a inglesa, e essa foi, entre tantas, mais uma nuvem que turvou os céus de Pamplona nesse ano de todos os perigos. Para piorar as coisas, a cidade encheu-se de forasteiros e, em parte por culpa da publicidade que Hemingway lhe dera, começava a tornar-se um destino turístico. Para cúmulo do horror, até Alexander Pollock Moore, o embaixador dos Estados Unidos em França, decidira visitar a tão falada Pamplona. Hemingway, aliás, conhecia-o, Moore tinha sido editor do The Pittsburgh Leader e era viúvo da famosa actriz, cantora e sufragista Lillian Russell. Encontrando-se em férias em San Sebastián, decidiria passar uns dias em Pamplona e conhecer as famosas festas em que os mais audazes corriam lado a lado com os touros. Muitos outros fizeram o mesmo e à cidade afluíram comboios apinhados de americanos e de ingleses vindos de Biarritz e de outras praias selectas..O grupo de Hemingway, no entanto, não podia queixar-se de que lhe estragaram a festa, pois também os seus membros eram estrangeiros e tinham vindo de longe, alguns até do outro lado do Atlântico. E, para agravar as coisas, nem sempre se comportaram com a dignidade que San Fermín exige: muitos anos depois, Juanito Quintana recordaria que os amigos de Hemingway não só bebiam em excesso como entravam aos gritos no hotel às tantas da madrugada, perturbando o sono dos toureiros que iam actuar no dia seguinte. Uma vez, Juanito teve mesmo de chamar a atenção de Hemingway, lembrando-o asperamente que El Niño de la Palma dormia no quarto ao lado e tinha corrida dali a umas horas..O dono do Quintana na altura nem sabia que o americano era escritor, ou em vias de o ser, e, entre outros episódios, recorda-se do mau feitio de Hemingway e do facto de estar constantemente a queixar-se do preço de tudo, inclusive das diárias no seu hotel. E, desmentindo a versão de Harold Loeb, segundo a qual Duff nunca teve caso algum com Cayetano Ordoñez, não só confirma a paixão dela pelo jovem toureio como se lembra, ponto fatal para Loeb, de que este, num ataque de ciúmes, chegou a agredir El Niño de la Palma, episódio que Hemingway recriará (carregando as tintas, claro) no seu romance de estreia. Eterno mitómano, o escritor inventará por completo uma história macabra sobre a morte de Duff, chegando a contá-la a Juanito Quintana como se fosse verdadeira..Na versão de Hemingway, a musa inspiradora da figura de Brett teve mil e uma aventuras, casou-se com um americano e foi viver para Taxco, no México, onde morreu em 1938, de tuberculose. A sua casa ficava numa ladeira e, contará Hemingway a Quintana, os homens que deviam transportar o caixão tinham-se embebedado furiosamente, deixando cair o ataúde ladeira abaixo, o que fez que se abrisse, largando a céu aberto o cadáver da triste aristocrata inglesa. Nada disso era verdade: Duff foi cremada e não houve sequer funeral..É certo que Ernest Hemingway tinha muitas razões de queixa dos amigos que escolhera para o acompanharem às Festas de San Fermín de 1925. Quando se preparavam para regressar a Paris, Duff e Patrick disseram-lhe que tinham gasto o dinheiro todo, não tinham sequer forma de pagar a conta do hotel. Ernest ficou furioso e, para o acalmar, Donald Stewart chamou a factura a si e arcou com as despesas. A viagem, como é evidente, acabou com um travo amargo. Anos mais tarde, Stewart dirá que foi triste, tristíssimo, ver tanta alegria e tanto companheirismo serem destruídos por uma dívida por saldar..Depois disso, e como previsto, os Hemingways foram até Madrid e, a seguir, às fallas >de Valência. Foi aí, reza o mito, que Ernest começou a escrever as primeiras páginas de Fiesta, com base em algumas notas que tirara em Pamplona. Anos depois, dirá em entrevistas que iniciou a redacção do livro em Valência, no dia do seu aniversário, 21 de Julho, mas, como tudo o que acontece com Ernest Hemingway, a ficção superava novamente a realidade. Desde logo, porque no dia 21 de Julho Hemingway encontrava-se em Madrid e não tinha partido ainda para Valência e, mais decisivamente, porque na cidade das fallas limitou-se a redigir algumas notas, não tendo começado a escrever uma só linha da sua opus magnum..No final de Agosto, e isso parece ser verdade, já tinha escrito umas 60 mil palavras e, em meados de Setembro, 80 mil. Submeteu o manuscrito, ou partes dele, a alguns amigos, como Scott Fitzgerald, e planeou lançá-lo em Outubro do ano seguinte, em Nova Iorque. Hesitava apenas quanto ao título. Pensou inicialmente em "Lost Generation", dado que os protagonistas pertencem à geração assim chamada por Gertrude Stein, a geração que vivera a Grande Guerra e agora tentava renascer dos seus escombros. Pensou também em Fiesta, título que seria usado nas edições castelhanas (e também na portuguesa, com tradução de Jorge de Sena) e na edição inglesa publicada em Londres em 1927, com a chancela da Jonathan Cape. Mas, para a edição inaugural na América, editada pela Scribner"s, optou por The Sun also Rises, uma frase extraída do Eclesiastes 1, 4-5:."Uma geração passa; e uma geração chega; E a terra fica de pé para sempre. O sol nasce e o sol põe-se; E transita para o seu lugar." (versão de Frederico Lourenço)>.Duff morreu no México, de tuberculose, aos 49 anos.>.Harold .Loeb teve uma vida sentimental atribulada e continuou a viajar pelo mundo, falecendo em Marraquexe em 1974..Permanentemente perseguido por dívidas, Patrick Guthrie morreu em Paris muito novo, com 37 anos, dizendo uns que se suicidou e outros que foi vitimado por uma overdose de drogas.>.Donald Ste.wart tornou-se um consagrado argumentista de Hollywood, que se especializou em comédias românticas e trabalhou com cineastas como George Cukor, Michael Curtiz e Ernst Lubitsch.>.Ha.dley separar-se-ia de Ernest pouco depois de este terminar o livro e, no acordo de divórcio, ficou com os direitos de autor dessa obra..<p>E Ernest, depois de ganhar o Nobel da Literatura, em 1954, matou-se com um tiro de caçadeira na sua casa de Ketchum, Idaho, em Julho de 1961..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
Em Hemingway avulta uma misoginia profunda, uma inveja dos ricos e uma eterna mitomania. Ganhou o Nobel da Literatura em 1954, matou-se com um tiro em 1961..O Inverno não fora fácil. Durante os longos meses de Paris, pouparam o que puderam para poder regressar lá, ao Sul. Fizeram planos para ir às festas de Pamplona, em Julho, depois a Madrid e, por fim, às fallas de Valência..À semelhança do que tinham feito no ano anterior, no saudoso Verão de 1924, em que "bebemos tanto e ninguém foi desagradável", convidaram vários amigos a acompanhá-los. A selecção dos cúmplices, porém, não se revelou a melhor: com Ernest e Hadley foram Lady Duff Twysden e o seu amante, o bon vivant inglês Patrick Guthrie, os escritores Harold Loeb e Donald Ogden Stewart e Bill Smith, um amigo de juventude de Hemingway, que na altura passava uma larga temporada em Paris..No ano anterior, os Hemingways e alguns amigos tinham ido a Burguete depois das festas de Pamplona. Agora, no fatídico 1925, fizeram o caminho inverso, na companhia de Donald Stewart e de Bill Smith, mas, por falta de peixe ou por outra razão qualquer (ao que parece, as ribeiras estavam pejadas de troncos e de ramos cortados pelos lenhadores), a jornada de pesca nos Pirenéus não correu bem - e o melhor que dela resta ainda são algumas páginas de Fiesta, deslumbrantes e imortais..Não foi esse o retrato que Hemingway fez daqueles dias. Preferiu, como sempre, colorir a verdade agreste com as tonalidades róseas do mito. Numa carta a Scott Fitzgerald, escrita em Burguete, na véspera da partida para Pamplona, onde nada disse sobre o insucesso da jornada pelos Pirenéus, afirmou que, para ele, o ideal de paraíso seriam dois lugares na barreira para assistir a uma corrida de touros e um rio com trutas no qual ninguém mais fosse autorizado a pescar..No dia 2 de Julho de 1925, começaram as hostilidades. O grupo reencontrou-se no Hotel Quintana, onde Ernest e a mulher tinham conseguido hospedar-se um ano antes, muito a custo, pois era o local de eleição dos toureiros e dos seus apoderados e daqueles que se orgulhavam de possuir a afición autêntica, como Juanito Quintana, o dono do hotel, um dos maiores entendidos em touros de toda a Espanha, que ficará amigo de Hemingway para toda a vida..Se em 1924 tinha havido algumas picardias, carburadas pelo álcool e pelo machismo, agora, no Verão de 1925, os problemas sucederam-se, e começaram logo à chegada. Lady Duff tinha passado uns dias em Saint-Jean-de-Luz na companhia de Harold Loeb, o que enfurecera Guthrie, mas também Hemingway, que, estranhamente, ou talvez não, se mostrou-se tão ou mais incomodado do que o seu amante..Donald Stewart, que fizera parte do grupo do ano anterior, apercebeu-se da tempestade iminente. E, nas suas memórias (By a Stroke of Luck! An Autobiography, 1975), dirá que os sanfermines de 1925 nada tiveram a ver com os de 1924 pelo simples motivo de que agora tinha sido aberta uma fresta através da qual Eva penetrara no Jardim do Éden. Eva, claro, era Duff Twysden, que em Fiesta surge retratada como Lady Brett Ashley..Os incidentes desse estio perigoso já foram contados diversas vezes, e dois livros recentes tratam-nos ao pormenor: Hemingway en los Sanfermines, de Miguel Izu, que seguimos de perto nesta narrativa sobre a feira dos mitos, e Everybody Behaves Badly: The True Story Behind Hemingway"s Masterpiece The Sun also Rises, de Lesley M. Blume..O essencial, porém, está no próprio livro de Hemingway, naquela que foi, literalmente, a sua obra-prima. Logo nas primeiras linhas desse roman à clef, detecta-se o mal disfarçado ódio a Robert Cohn, o alter ego literário de Harold Loeb, com quem o escritor esteve prestes a andar à pancada em plena Festa de San Fermín. A culpa, é óbvio, foi da serpente à solta nos jardins do Paraíso: Hemingway não se incomodava que Duff tivesse amantes e até um caso tórrido com um toureiro, como a Brett da novela, que se apaixona perdidamente por um jovem matador de 19 anos, Pedro Romero; o que o irritava, acima de qualquer coisa, era a subserviência de Harold Loeb perante a diva, o facto de o amigo ter perdido a sua compostura e a sua dignidade e, a troco de uns breves instantes de atenção por parte da deusa, prestar-se a figuras ridículas, mais próprias de um adolescente imaturo do que de um homem feito..No retrato que faz de Robert Cohn, um aspirante a escritor de origem judaica devorado pela boémia parisiense, alguns já notaram laivos de anti-semitismo, mas o que parece mais certo é que aí avulta, uma vez mais, a misoginia profunda do autor de Fiesta, que o levava a desconsiderar não a mulher sedutora e sexualmente desinibida, como Duff/Brett, mas os homens que se deixavam subjugar pelos encantos da feminilidade, como Loeb/Cohn..Foi isso que levou Hemingway, numa tarde mais acalorada das festas de Pamplona, a insultar o seu companheiro de viagem, acusando-o de andar no encalço de uma mulher já tomada por outro, cena que levou os dois machos a sair do café onde estavam para se defrontar aos murros, em plena rua. Ambos tinham praticado boxe amador em Paris, tal qual se conta também em Fiesta, mas, ao prepararem-se para o duelo, Loeb disse que não queria partir os óculos, pois não tinha forma de os consertar em Pamplona, e Hemingway respondeu que também ele não queria estragar a festa reinante com uma cena pueril de pugilato. No dia seguinte, escreveu um bilhete a Loeb pedindo-lhe desculpas pelo sucedido, e o incidente ficou sanado. Ou talvez não. Numa espécie de vingança ao retardador, que não abona muito sobre as suas qualidades de carácter, Hemingway irá relatá-lo, com algumas liberdades criativas, na novela que andava a escrever..Harold Loeb, naturalmente, ficou furioso e, muitos anos depois, tentou contrariar o retrato caricatural que Hemingway dele fez em Fiesta. Num livro autobiográfico, intitulado, não por acaso, The Way It Was, saído em 1959, apresentou a sua versão dos acontecimentos: negou que tivesse andado atrás de Lady Duff; afirmou que foi ele que a rechaçara em Saint-Jean-de-Luz, quando ela lhe propôs partirem juntos para a América do Sul numa fuga louca; lamentou que, durante todo o tempo que passou nas Festas de San Fermín, tivesse tido de suportar a animosidade de Ernest Hemingway e de Patrick Guthrie..E, quanto a um ponto fulcral, o do romance escaldante entre a aristocrata inglesa e o toureiro Cayetano Ordoñez, El Niño de la Palma (o seu pai era dono de uma sapataria em Ronda com o nome La Palma), que inspirou o caso Lady Brett-Pedro Romero da novela, Loeb garantiu que o único contacto físico que ambos tiveram foi um casto aperto de mão à porta do hotel, quando o grupo dos expatriados de Paris se preparava para regressar a França..Ao contrário do que se possa pensar, Harold Loeb, a principal vítima daquele Verão perigoso de 1925, não era um qualquer e, mais do que isso, não era sequer um desconhecido ou um aspirante a escritor vivendo nas raias da miséria. Oriundo de uma das famílias judias mais ricas de Nova Iorque, sendo o pai um banqueiro bem-sucedido, sócio da próspera sociedade de investimentos Kuhn, Loeb & Company, e a mãe pertencente à dinastia Guggenheim (o que fazia dele primo direito da celebérrima Peggy Guggenheim), Harold Loeb formara-se em Princeton e, no pós-guerra, teve dinheiro suficiente para se tornar um dos donos da muito badalada livraria The Sunwise Turn, onde existia um salão literário a que acorriam com frequência vultos promissores das letras e da boémia, como Scott Fitzgerald, Robert Frost, a sua prima Peggy Guggenheim, entre tantos outros. Depois disso, fora um dos fundadores da Broom, uma revista de vanguarda onde colaboraram nomes como Picasso, Man Ray, Sherwood Anderson, William Carlos Williams, Juan Gris ou e.e. cummings. Não era um qualquer, longe disso..Ainda assim, Harold Loeb teria decerto razões para algum ressentimento. Voluntariara-se para a guerra, mas um defeito de visão impediu-o de ser mobilizado para combater, sendo obrigado a ficar na retaguarda, a trabalhar à secretária. Um ponto a menos no duelo existencial com Hemingway. Tinha muito mais dinheiro do que este, sem dúvida, mas Hemingway proferira um dia uma frase letal, que muitos dizem ser apócrifa, quanto ao poder das grandes fortunas. Quando Scott Fizgerald lhe disse, deslumbrado, "os ricos são diferentes de nós", Hem respondeu de forma cortante: "Sim, têm mais dinheiro." Em todo o caso, ele próprio se esforçaria para ser rico e, sobretudo no final da vida, apreciava muito a companhia dos endinheirados, especialmente dos aristocratas com títulos lustrosos, facto que ficará bem patente nos convivas que o acompanharam nas suas excursões por Espanha no pós-Segunda Guerra (outro mito em seu redor garante que, após a subida de Franco ao poder, Hemingway nunca mais atravessou os Pirenéus, o que é falso)..Naquela frase de Hemingway sobre os ricos há uma ponta de ressentimento, talvez mesmo de inveja, e os acidentes da sua relação com Harold Loeb também reflectem isso, sem dúvida. Mas reflectem principalmente, apesar de Hemingway considerar Loeb um idiota ou, no mínimo, um indivíduo vazio e desinteressante, a dor sentida por Duff continuar a bafejá-lo com a sua graça, indo com ele para Saint-Jean-de-Luz, respondendo aos seus constantes avanços, namoriscando-o frivolamente..Não é o que transparece no enredo de Fiesta, em que o protagonista e alter ego de Hemingway, Jake Barnes, é o homem que Brett verdadeiramente ama; na "vida real", como se costuma dizer, as coisas parecem ter sido diferentes, não existindo provas de que alguma vez Duff Twysden tenha amado Ernest Hemingway. Assim, Fiesta, entre muitas coisas, pode ser também uma expressão de rancor por parte de um homem preterido por outro, ou outros, e a mitificação do amor entre Jake e Brett pode constituir não mais do que um grito de despeito de Ernest Hemingway.>.Ha.dley, naturalmente, não achou graça às investidas do marido sobre a inglesa, e essa foi, entre tantas, mais uma nuvem que turvou os céus de Pamplona nesse ano de todos os perigos. Para piorar as coisas, a cidade encheu-se de forasteiros e, em parte por culpa da publicidade que Hemingway lhe dera, começava a tornar-se um destino turístico. Para cúmulo do horror, até Alexander Pollock Moore, o embaixador dos Estados Unidos em França, decidira visitar a tão falada Pamplona. Hemingway, aliás, conhecia-o, Moore tinha sido editor do The Pittsburgh Leader e era viúvo da famosa actriz, cantora e sufragista Lillian Russell. Encontrando-se em férias em San Sebastián, decidiria passar uns dias em Pamplona e conhecer as famosas festas em que os mais audazes corriam lado a lado com os touros. Muitos outros fizeram o mesmo e à cidade afluíram comboios apinhados de americanos e de ingleses vindos de Biarritz e de outras praias selectas..O grupo de Hemingway, no entanto, não podia queixar-se de que lhe estragaram a festa, pois também os seus membros eram estrangeiros e tinham vindo de longe, alguns até do outro lado do Atlântico. E, para agravar as coisas, nem sempre se comportaram com a dignidade que San Fermín exige: muitos anos depois, Juanito Quintana recordaria que os amigos de Hemingway não só bebiam em excesso como entravam aos gritos no hotel às tantas da madrugada, perturbando o sono dos toureiros que iam actuar no dia seguinte. Uma vez, Juanito teve mesmo de chamar a atenção de Hemingway, lembrando-o asperamente que El Niño de la Palma dormia no quarto ao lado e tinha corrida dali a umas horas..O dono do Quintana na altura nem sabia que o americano era escritor, ou em vias de o ser, e, entre outros episódios, recorda-se do mau feitio de Hemingway e do facto de estar constantemente a queixar-se do preço de tudo, inclusive das diárias no seu hotel. E, desmentindo a versão de Harold Loeb, segundo a qual Duff nunca teve caso algum com Cayetano Ordoñez, não só confirma a paixão dela pelo jovem toureio como se lembra, ponto fatal para Loeb, de que este, num ataque de ciúmes, chegou a agredir El Niño de la Palma, episódio que Hemingway recriará (carregando as tintas, claro) no seu romance de estreia. Eterno mitómano, o escritor inventará por completo uma história macabra sobre a morte de Duff, chegando a contá-la a Juanito Quintana como se fosse verdadeira..Na versão de Hemingway, a musa inspiradora da figura de Brett teve mil e uma aventuras, casou-se com um americano e foi viver para Taxco, no México, onde morreu em 1938, de tuberculose. A sua casa ficava numa ladeira e, contará Hemingway a Quintana, os homens que deviam transportar o caixão tinham-se embebedado furiosamente, deixando cair o ataúde ladeira abaixo, o que fez que se abrisse, largando a céu aberto o cadáver da triste aristocrata inglesa. Nada disso era verdade: Duff foi cremada e não houve sequer funeral..É certo que Ernest Hemingway tinha muitas razões de queixa dos amigos que escolhera para o acompanharem às Festas de San Fermín de 1925. Quando se preparavam para regressar a Paris, Duff e Patrick disseram-lhe que tinham gasto o dinheiro todo, não tinham sequer forma de pagar a conta do hotel. Ernest ficou furioso e, para o acalmar, Donald Stewart chamou a factura a si e arcou com as despesas. A viagem, como é evidente, acabou com um travo amargo. Anos mais tarde, Stewart dirá que foi triste, tristíssimo, ver tanta alegria e tanto companheirismo serem destruídos por uma dívida por saldar..Depois disso, e como previsto, os Hemingways foram até Madrid e, a seguir, às fallas >de Valência. Foi aí, reza o mito, que Ernest começou a escrever as primeiras páginas de Fiesta, com base em algumas notas que tirara em Pamplona. Anos depois, dirá em entrevistas que iniciou a redacção do livro em Valência, no dia do seu aniversário, 21 de Julho, mas, como tudo o que acontece com Ernest Hemingway, a ficção superava novamente a realidade. Desde logo, porque no dia 21 de Julho Hemingway encontrava-se em Madrid e não tinha partido ainda para Valência e, mais decisivamente, porque na cidade das fallas limitou-se a redigir algumas notas, não tendo começado a escrever uma só linha da sua opus magnum..No final de Agosto, e isso parece ser verdade, já tinha escrito umas 60 mil palavras e, em meados de Setembro, 80 mil. Submeteu o manuscrito, ou partes dele, a alguns amigos, como Scott Fitzgerald, e planeou lançá-lo em Outubro do ano seguinte, em Nova Iorque. Hesitava apenas quanto ao título. Pensou inicialmente em "Lost Generation", dado que os protagonistas pertencem à geração assim chamada por Gertrude Stein, a geração que vivera a Grande Guerra e agora tentava renascer dos seus escombros. Pensou também em Fiesta, título que seria usado nas edições castelhanas (e também na portuguesa, com tradução de Jorge de Sena) e na edição inglesa publicada em Londres em 1927, com a chancela da Jonathan Cape. Mas, para a edição inaugural na América, editada pela Scribner"s, optou por The Sun also Rises, uma frase extraída do Eclesiastes 1, 4-5:."Uma geração passa; e uma geração chega; E a terra fica de pé para sempre. O sol nasce e o sol põe-se; E transita para o seu lugar." (versão de Frederico Lourenço)>.Duff morreu no México, de tuberculose, aos 49 anos.>.Harold .Loeb teve uma vida sentimental atribulada e continuou a viajar pelo mundo, falecendo em Marraquexe em 1974..Permanentemente perseguido por dívidas, Patrick Guthrie morreu em Paris muito novo, com 37 anos, dizendo uns que se suicidou e outros que foi vitimado por uma overdose de drogas.>.Donald Ste.wart tornou-se um consagrado argumentista de Hollywood, que se especializou em comédias românticas e trabalhou com cineastas como George Cukor, Michael Curtiz e Ernst Lubitsch.>.Ha.dley separar-se-ia de Ernest pouco depois de este terminar o livro e, no acordo de divórcio, ficou com os direitos de autor dessa obra..<p>E Ernest, depois de ganhar o Nobel da Literatura, em 1954, matou-se com um tiro de caçadeira na sua casa de Ketchum, Idaho, em Julho de 1961..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.