A feira dos mitos (2)

Esse foi o ano grande, o da jornada épica.
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Tinham passado uma temporada do lado de lá do Atlântico, o primogénito nasceu em Toronto. O pai, embevecido, chamou-lhe Nicanor, em homenagem ao toureiro que o fascinara uns meses antes, nas festas de San Fermín. Quando se encontrava no Canadá, viu publicado o seu primeiro livro. Embevecido, chamou-lhe Three Stories and Ten Poems e, levado pelo entusiasmo, tomou a decisão vital, irrevogável, de abandonar o trabalho como correspondente do The Toronto Star para se dedicar em exclusivo à literatura.

Deixaram o bebé em Paris ao cuidado de uma ama e encaminharam-se a Pamplona na companhia de um punhado de amigos: John Dos Passos e a namorada, Crystal Ross, Bill Bird e a mulher, o escritor e guionista Donald Ogden Stewart, "Chink" Dorman-Smith, Robert McAlmon e o quase adolescente George O"Neill, filho de uns amigos da América. Dos Passos, sempre cáustico, definiria a viagem como "um tour da agência Cook dirigido por Hem [Hemingway] como mestre-de-cerimónias".

Ernest e Hadley foram à frente, sozinhos, de comboio de Paris a Pamplona, partindo a 26 de Junho, ano de 1924. Chegados ao destino, reservaram quartos nos hotéis para o resto do grupo e, na manhã seguinte, Ernest foi para a fila frente à Casa da Misericórdia para comprar bilhetes para as corridas e para renovar a assinatura feita em seu nome no ano anterior. Com tudo tratado, dirigiram-se para Madrid, onde assistiram a uma corrida, provavelmente a 29 de Junho. Foi lá que Hemingway conheceu o crítico tauromáquico Rafael Hernández, que lhe aconselhou a hospedar-se em Pamplona no Hotel Quintana, cujo proprietário, Juanito, era um dos maiores aficionados de Espanha, amigo de figuras lendárias como Joselito e Belmonte, o melhor e o mais entendido anfitrião que o escritor poderia ter na orgia dos touros e dos sanfermines.

Situado no número 18 da Plaza de la Constitución, o Hotel Quintana estava aberto desde 1912, mas logo três anos depois da inauguração, por falecimento do proprietário, Ignacio Quintana Barreneche, a gestão do estabelecimento passou para o filho mais velho, Juanito, que empreendeu diversos melhoramentos, entre os quais a abertura de um segundo restaurante, no piso térreo, com entrada por uma ruela das traseiras, complementando o existente no primeiro andar, com vista para a praça. Tudo isso - o Hotel Quintana e o seu dono, o restaurante do piso térreo com entrada para uma ruela das traseiras - constituirá a matéria-prima e será descrito ao pormenor em The Sun Also Rises/Fiesta, ainda que o autor tenha optado por mudar os nomes para Hotel Montoya e, naturalmente, para Juanito Montoya.

De regresso a Pamplona, após a curta temporada em Madrid, os Hemingway conseguiram um quarto no concorridíssimo Hotel Quintana, talvez por intercessão de Rafael Hernández, decerto por intervenção e proeza do destino. Os demais membros do grupo ficariam no Hotel La Perla, mas logo então houve um incidente, dos muitos, mas de pouca monta, que povoaram aquele Verão perigoso: Hemingway reservara um quarto de casal para John Dos Passos e para a namorada, esta ficou incomodada com tal excesso de intimidade e exigiu quartos separados, o que obrigou a remarcações e mudanças logísticas muito difíceis naquela altura do ano, com os hotéis a abarrotar de forasteiros para a brava festa. No final, tudo se compôs e Hemingway pôde pernoitar no Quintana, o hotel dos toureiros e seus apoderados, partilhando o mesmo tecto com um dos seus ídolos, Juan de Maera, que morreria tragicamente meses depois, aos 28 anos, vitimado por uma tuberculose. Muitos anos depois, em 1966, Juanito Quintana dirá ao escritor James Michener, como este refere no apaixonante Iberia: Spanish Travels and Reflections, que, quando conheceu Ernest Hemingway, este só conhecia meia dúzia de palavras de castelhano e nada sabia de touros. Mas era tal a paixão, nas raias da demência infrene, que, ao fim de uma temporada, já era capaz de opinar sobre faenas e matadores com a mesma desenvoltura dos aficionados mais experientes.

A festa começou a um domingo, 6 de Julho. Foi às mesas do Café Iruña que Hemingway e os amigos ouviram o deflagrar do chupinazo, o foguete pirotécnico que assinala o início das hostilidades e, nos dias subsequentes, o grupo dos americanos e ingleses adaptou-se facilmente à rotina boémia: banhos num rio vizinho pela fresca da manhã, combate corpo a corpo com o calor do meio-dia, às esplanadas dos cafés e a golpes de Pernod, tarde passada nas corridas, o jantar monumental - e farra até às tantas.

Nesse ano, Hemingway ainda não se sentiu à vontade para participar activamente no encierro, o momento alto das festas de Pamplona, tremendíssimo, quando centenas de jovens vestidos de branco correm com os touros até à praça da cidade. Também ele correu ao lado das bestas perigosas, mas de longe, sem correr riscos, tanto mais que o seu objectivo primordial, e o dos seus amigos, era a festa dos aspirantes a toureiros, as faenas amadoras com reses emboladas em que cada qual podia tentar a sua sorte, quase sempre sem consequências de maior. Entre os membros do seu grupo, Donald Ogden Stewart foi dos primeiros a tentar a sorte, mas acabou colhido ao fim de poucos minutos e saiu da arena em ombros com duas costelas partidas, por entre a aclamação dos presentes. "Chink" Dorman-Smith foi mais afortunado e saiu ileso da prova de virilidade, mas nunca esqueceu os risos e a troça dos espanhóis que, depois de o tentarem instruir por breves instantes, deixaram-no entregue ao seu destino. Com uma capa emprestada, Hemingway desenvencilhou-se como pôde, ao que parece sem grande sucesso.

A actriz Julia Hoyt, uma estrela do mudo, que assistiu à corrida de 8 de Julho na companhia de Belmonte do pintor Ignacio Zuloaga, em que o triunfador da tarde foi José García Carranza, el Algabeño, recorda-se de este lhe contar, entre barrigadas de riso, as desventuras de três americanos no dia anterior. Um deles, a quem Algabeño emprestara a capa, fora Hemingway, que pelos vistos terá tido um desempenho inolvidável, entre o atroz e o cómico. Não foi isso, porém, o que correria mundo. Pelo contrário. Alguém fez chegar à imprensa da América que Hemingway, um herói de guerra, e um seu amigo, Donald Stewart, tinham sido severamente colhidos nas festas de Pamplona, mas que já não se encontravam em perigo de vida. Desconhece-se se foi o escritor que pôs a correr o boato épico, sabendo-se tão-só, como salienta Miguel Izu em Hemingway en los Sanfermines (Ediciones Eunate, 2019), que ele enviou uma carta e algumas fotografias para os seus antigos colegas na redacção do The Toronto Star Weekly, limitando-se nessa missiva a explicar a diferença entre uma corrida de touros e aquela novilhada para amadores em que participara. Seja ou não obra de Hemingway, o certo é que a notícia das suas proezas taurinas foi dada com enorme destaque, numa narrativa que destacava o seu carácter aventureiro, recordando a experiência de guerra em Itália, as suas reportagens sobre o conflito greco-turco ou os seus feitos de pescador nos Pirenéus, a que agora se juntava a lide de touros bravos numa festa de Navarra. O mito ia surgindo e sendo construído aos poucos, passo a passo, como se fosse fruto de uma hábil estratégia de relações públicas ou produto de um espírito sedento de glória e aplauso.

Na altura, é certo, ainda não alcançara os cumes da fama e, sintomaticamente, a Vanity Fair recusou publicar um artigo que Hemingway lhe enviara, "My Life in the Bull Ring with Donald Ogden Stewart", um relato humorístico das suas façanhas tauromáquicas nos sanfermines de 1924, que só veria a luz do dia em 2013. O escritor, aliás, contou aos quatro ventos o que se passara na novilhada memorável, quase sempre carregando as tintas do seu destemor e da sua indiferença perante a morte postada diante dos seus olhos. Num postal para Gertrude Stein e para a sua companheira Alice B. Toklas, contou - e, ao que parece, era verdade - que, numa cena digna do filme Quo Vadis, enfrentou um dos animais em fúria agarrando-o pelos cornos e derrubando-o ao chão, o que lhe valeu ser multado pelas autoridades.

As festas de 1924 seriam lembradas por outro motivo, bem mais triste. No encierro de domingo, 13 de Julho, um jovem de nome Esteban Domeño Laborda, de Sangüesa, foi colhido mortalmente enquanto corria com os touros. Durante muito tempo, julgou-se que foi a primeira vítima mortal dos encierros de San Fermín, uma tradição que já custou a vida a 16 jovens, entre eles um americano do Illinois, em 1995, o último dos quais em 2009. Sabe-se hoje que, antes de Esteban Laborda (ou Laborra, as fontes variam), já tinha havido outra vítima, Francisco García Gurrea, de 21 anos: colhido em Julho de 1910 no aglomerado caótico que se forma à porta da praça de touros, morreu em Janeiro do ano seguinte, em resultado de uma tuberculose contraída devido aos ferimentos sofridos em Pamplona.

A morte de Esteban Laborda, ocorrida num dos pontos mais perigosos do percurso, actualmente conhecido como a "curva da Telefónica", logo antes da recta final que dá acesso à praça de touros, impressionou vivamente os presentes, a maioria dos quais não se recordava da tragédia de Francisco Gurrea, tanto mais que esta não fora imediata nem à vista de todos. Hemingway irá descrever o episódio em Fiesta, permitindo-se, todavia, algumas liberdades criativas: designou a vítima por Vicente Gironés e, para aumentar o dramatismo, disse que era um lavrador casado, pai de dois filhos e que tivera morte quase instantânea, à vista de todos. Na realidade, Esteban Laborda era solteiro, tinha 22 anos, morava em Pamplona e morreu no hospital, 36 horas depois de sofrer a cornada fatídica.

Mas se, no ano anterior, nem um terramoto em plena festa abalara o delírio das gentes, não seria a morte de um jovem que iria estragar os sanfermines, que também são feitos da morte ou, pelo menos, da sua possibilidade. Em 1924, houve seis corridas e, apesar de não existir consenso quanto a este ponto, o triunfo parece ter cabido a Juan de Maera, que Hemingway conhecera em 1923 e de que se fez amigo, dedicando-lhe um trecho inteiro de Morte à Tarde, no qual o descreve como um homem divertido e orgulhoso, que desprezava o dinheiro e a morte e que, mesmo sabendo padecer de tuberculose, não tinha o mínimo cuidado com a saúde nem largava a (muita) bebida. Morreu poucos meses depois, mas, enquanto foi vivo, escreverá Hemingway, "devolveu à festa a paixão e a dignidade perdidas", ainda que não se saiba como poderia o norte-americano saber que paixão e dignidade tinha a festa de outrora, já que, para todos os efeitos, só há pouco vira uma corrida pela primeira vez e começara a interessar-se pelas touradas.

As festas de San Fermín terminaram, como sempre, a 14 de Julho. Do grupo de Ernest Hemingway, uns já haviam partido dias antes, outros rumaram directamente a Paris e outros, como ele e a mulher, dirigiram-se a Burguete, uma terreola de menos de 500 almas nas faldas dos Pirenéus, não muito longe de Roncesvalles, o lugar mítico da Canção de Rolando, onde a rectaguarda das tropas de Carlos Magno fora impiedosamente dizimada pelos bascos.

O escritor ficou deslumbrado pela beleza ímpar daquele lugar, pelos bosques cerrados com árvores antiquíssimas, que lhe pareceram vindas de um conto de fadas. Em carta à sua mãe, descreveu Burguete como "a wonderful, high, green, rolling country" e a jornada de pesca às trutas que aí efectuou dar-lhe-á pretexto para um conto, "Big Two-Hearted River", além, claro está, de fornecer a inspiração para algumas das mais belas páginas de Fiesta.

Hemingway, que dizia ser Espanha o melhor país da Europa para a pesca da truta (apesar de até então nunca ter pescado trutas em Espanha...), tinha há muito o desejo de fazer uma jornada piscatória nas ribeiras altas dos Pirenéus. Agora, estando em Pamplona, a ocasião era mais que propícia: do n.º 19 da Plaza de la Constitución, na porta ao lado do Hotel Quintana, ficavam os escritórios de La Montañesa, a empresa de camionagem que fazia o trajecto até Burguete, e o autocarro partia mesmo defronte do hotel. A bordo subiram Ernest e a mulher, John Dos Passos e a noiva, Robert McAlmon, "Chink" Dorman-Smith e o jovem George O"Neill.

Além das pescarias, os homens decidiram atravessar os Pirenéus a pé, por trilhos sinuosos que iam até Andorra. Hemingway, claro, quis acompanhá-los, mas teve de ficar em Burguete a acompanhar Hadley, que não se sentia em condições de participar naquela aventura. Aventura em que, uma vez mais, avultou a ingenuidade ou talvez mesmo a ignorância daquele grupo de boémios de Paris. Robert McAlmon fez-se ao caminho com umas alpargatas, o único calçado que levara para a viagem, e, ao fim de poucos quilómetros, a orografia do lugar e o solo juncado de pedras deixaram-no em mísero estado, com os pés cobertos de bolhas e uma ruptura no tendão de Aquiles. A custo, conseguiu chegar a uma aldeia onde parava a camioneta com destino a França, enquanto os seus companheiros seguiam sem sobressaltos até Andorra.

Os Hemingway ficaram uns dias por Burguete, que hoje, tristemente, tem menos de metade dos habitantes daquela época (o facto de ser mencionada em Fiesta é, aliás, o único traço saliente que lhe aponta a versão portuguesa da Wikipédia, ao contrário da versão castelhana, que descreve a história de Burguete sem referir uma só vez a novela de Hemingway). Daí regressaram a Paris, com uma paragem em San Sebastián para ir aos touros, como é óbvio. Na Corrida da Imprensa, realizada a 25 de Julho, a que Ernest e Hadley assistiram, destacou-se um nome, Juan de Maera, naquela que foi, provavelmente, uma das suas últimas actuações e naquela que foi, certamente, a última vez que Hemingway o viu.

Em Paris, as histórias daquele Verão espanhol seriam desfiadas durante meses. No grupo do Café du Dôme ou às mesas do bar Dingo, onde se reuniam os correspondentes da América e de outras partes do mundo, todos ficaram a conhecer as proezas e as desventuras do escritor e dos seus companheiros. George O"Neill, o adolescente filho de uns amigos americanos do casal, levara uma câmara e filmara tudo, o bulício das ruas e dos cafés, os encierros matinais, as corridas vespertinas, as lides de Hemingway e dos outros na novilhada dos amadores. Ao todo, 23 rolos de película, que lhe haviam sido dados pelo grande Man Ray e que poderiam ser vistos por quem o quisesse no seu estúdio em Paris. Desgraçadamente, os filmes acabaram por desaparecer no estúdio de Man Ray e perderam-se para sempre.

Sem imagens para recordar, ficou apenas a lembrança de um ano bom, do Verão em que "bebemos tanto e ninguém foi desagradável". Os sanfermines de 1925 seriam diferentes, muito diferentes. Mais intensos, sem dúvida, mas também ensombrados por paixões funestas, pelos ciúmes de amor, pela ruim inveja. A narrativa de Fiesta é urdida a partir desses dois verões, o de 1924 e de 1925, tão diferentes entre si, mas tão idênticos também, já que em ambos avultou, e ainda bem, a mesma e singular tragédia, a do homem perante a morte.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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