De quantas lendas se faz uma história? Ele esteve lá, é certo, e várias vezes, mas não tantas quanto se fala. Nem foi o primeiro, ao contrário do que muitos dizem. Sem ele, contudo, a história não seria a mesma. Ernest Hemingway descobriu Pamplona e os sanfermines em Julho de 1923. Regressaria mais vezes, antes e depois da Guerra Civil Espanhola. Mas, ao invés do que conta a lenda, e do que ainda hoje se diz sobre a sua celebrada afición, não foi o primeiro estrangeiro a visitar as festas de Pamplona, nem sequer o primeiro turista de língua inglesa a deslocar-se lá. O escritor contribuiu para o mito e, nos anos 20, proclamou aos quatro ventos que, naquele Verão de 1923, ele e a mulher tinham sido os únicos estrangeiros na cidade. A afirmação era tão falsa, tão escandalosamente falsa - e logo desmentida pelo testemunho de outros estrangeiros que também estiveram em Pamplona em Julho de 1923 -, que Hemingway teve o bom senso de a corrigir anos depois em O Verão Perigoso, o relato da rivalidade épica entre Luis Miguel Dominguín e o seu cunhado Antonio Ordóñez na histórica temporada de 1959..Quando visitou Pamplona pela primeira vez, Hemingway vivia em Paris como correspondente do The Toronto Star Weekly e aspirante a escritor. Descreverá a experiência, "o tempo em que éramos muito pobres e muito felizes", em páginas enternecedoras de Paris É Uma Festa, onde, uma vez mais, a pulsão da fantasia se sobrepôs esmagadoramente à nudez crua da verdade. Ernest e a primeira mulher, a antiga pianista Elizabeth Hadley Richardson, passaram algumas dificuldades em França, mas nem ele nem os demais membros da "geração perdida" - o termo imorredouro que Gertrude Stein ouvira da boca de um mecânico numa garagem em Paris e com o qual definiu para sempre o perfil da geração do entreguerras -, nem Hemingway nem os seus camaradas de escrita e de farra, insiste-se, conheceram a pobreza ou viveram sob o espectro da penúria..Hadley recebia uma pensão confortável da mãe e, não muito depois, herdará uma quantia volumosa de uma tia solteira e rica. Ernest tinha um emprego fixo que lhe garantia um salário razoável e pago em moeda forte. Paris era então uma cidade acessível para os que vinham do lado de lá do Atlântico e os jovens da lost generation não eram assim tão perdidos, pois sabiam que, em caso de aperto, nunca lhes faltaria o generoso e maternal amparo de Gertrude Stein. Não viviam à larga, é certo, mas as histórias de miséria que Hemingway conta em Paris É Uma Festa, como a dos tempos em que só tinha jantar se conseguisse apanhar um pombo incauto numa praça ou num jardim da Cidade-Luz, só parcialmente são verdadeiras. Hemingway e a mulher tinham uma ama para o filho acabado de nascer, viajavam amiúde pela Europa (à Itália, à Alemanha para pescar, à Suíça para esquiar), frequentavam cafés e restaurantes da moda, os quais, ainda que não sendo de luxo, eram os lugares de eleição dos intelectuais e dos artistas da Paris do pós-guerra..Gertrude Stein e Alice B. Toklas, sua amante, eram aficionadas, tinham estado em Espanha para assistir a corridas de touros, mostraram ao jovem Hemingway fotografias suas na Praça de Valência, ao lado de Joselito e de Gallo, imagens certamente captadas em 1915, quando as duas passaram uma larga temporada em Palma de Maiorca para fugir à guerra. Mesmo sem ter ainda presenciado uma corrida, Ernest possuía já uma enorme curiosidade pela tauromaquia, sobre a qual escrevera um breve conto para a The Little Review, em que o protagonista, um jovem toureiro, se vê na contingência de ter de matar todos os touros da festa, uma vez que os outros matadores tinham sido colhidos durante as suas faenas. Como escreverá em Morte à Tarde, uma praça de touros era o único lugar onde, em tempos de paz, se podia observar de perto a morte violenta, e, como escritor, o seu principal interesse eram as coisas simples, nada existindo de mais simples e essencial do que uma morte violenta..Esteve fugazmente em Espanha em 1919, quando fez escala em Algeciras no regresso aos Estados Unidos, vindo de Itália e da Grande Guerra; e em 1921, quando o navio que o levava a França parou em Vigo, cuja baía o deixou fascinado e lhe deu ensejo para escrever um artigo sobre a pesca do atum-azul, "o rei dos peixes". Agora, na Primavera de 1923, ia finalmente conhecer a Ibéria lendária. Partiu de Paris com o seu amigo e editor Robert McAlmon, que custeou a viagem, hospedaram-se na Pensión Aguilar, em Madrid, pouso habitual dos toureiros e dos seus empresários. Dias mais tarde, juntou-se-lhes Bill Bird, jornalista, também ele a residir na capital francesa..A jornada começou, evidentemente, pelo cochinillo assado do Sobrino de Botín, hoje infestado de turistas russos e chineses atraídos pela placa do Guinness que assegura ser aquele o mais antigo restaurante do mundo ainda em funcionamento. Além dos almoços pantagruélicos, de que existem ecos em Fiesta, como na esmagadora cena final entre Jake e Brett, Hemingway e os seus amigos foram ao Prado ver os quadros de El Greco e, obviamente, não perderam as corridas de touros. A primeira delas em 27 de Maio de 1923, na Praça de Fuente del Berro, ou da Carretera de Aragón, mais tarde demolida e substituída pela monumental Las Ventas. Como viajantes empenhados, foram também a Aranjuez, a Sevilha, à assombrosa Ronda (onde hoje existe um busto do escritor, e outro de Orson Welles) e a Granada. Houve episódios caricatos, como o de um leque comprado em Sevilha, muito típico, mas cuja etiqueta confessava, envergonhada, "made in Japan". E houve touros, muitos..Para os americanos, o mais impressionante era o martírio dos cavalos dos picadores, à época ainda não protegidos das investidas dos touros, frequentemente mortais (como refere José María de Cossío no clássico e enciclopédico Los Toros, só em 1932, e mediante concurso, foi aprovado regulamentarmente o modelo da capa protectora do peito dos cavalos dos picadores, num material flexível mas resistente). Os espanhóis estavam habituados a assistir àquela barbárie, não se incomodavam de ver cavalos moribundos a rastejar na arena, esventrados, com as tripas de fora, um vendaval de sangue. Muitos estrangeiros desmaiavam, outros desviavam o olhar, outros ainda só suportavam a cena grotesca depois de toldados por várias doses de whisky. Hemingway, como é óbvio, fazia gala em ser diferente, muito forte e macho, em mostrar que era capaz de aguentar tudo aquilo com o mesmo ar impassível com que presenciara as atrocidades de uma guerra há pouco terminada. Segundo ele, Espanha era o único país da Europa que não fora devastado por essa guerra e, de todos os povos do Velho Continente, os espanhóis foram os únicos que conseguiram manter as tradições genuínas e a autenticidade de carácter em tempos tão sombrios e adversos..Não muito depois da primeira viagem, regressou. No início de Julho de 1923, Ernest Hemingway e a mulher rumaram até Pamplona, para a festa de San Fermín. Hadley estava grávida de seis meses, prestes a ter o primeiro filho, mas nem isso os dissuadiu. Pelo contrário, Hemingway, sempre obcecado com a virilidade (um traço de carácter que terá influência decisiva no seu suicídio brutal, em 1961), considerava um bom augúrio que o seu primogénito varão fosse bafejado pelo som e pela fúria das corridas de touros, que conhecesse o odor da morte antes sequer de nascer, como o escritor dirá nas cartas que mandou para casa, para a sua mãe e para uma amiga de infância em Oak Park..O casal chegou a Pamplona ao final da tarde de 6 de Julho, o primeiro dia das festas bravas. A cidade estava inundada de forasteiros, nas ruas acumulavam-se massas compactas de gente ruidosa. A partir de Paris, os Hemingway tinham reservado quarto num hotel do centro, na Plaza de la Constitución, o La Perla. Construído em 1881, ainda hoje em funcionamento, o La Perla era então gerido por uma família de simpatias nacionalistas, cujo patriarca seria mais tarde chefe da Falange em Navarra, membro da Junta de Burgos, procurador às Cortes em representação do sindicato vertical de hotelaria e governador civil de Badajoz nos primeiros tempos do franquismo. Não foi isso, porém, que demoveu Hemingway de se hospedar lá, mas sim a raiva que lhe causou o oportunismo da dona do hotel, que não só jurava não ter qualquer reserva em seu nome (quando ele tivera o cuidado de enviar um telegrama e uma carta com várias semanas de antecedência) como lhe exigia o preço exorbitante de dez dólares por uma diária. Tinham dinheiro mais do que suficiente para pagar essa quantia, mas Ernest odiava ser enganado e, após uma altercação violenta com a dona do La Perla, fixou-se num quarto de uma casa particular no n.º 5 da Calle Hilarión Eslava, por cima de uma farmácia que ainda hoje existe. Por cinco dólares, metade do preço, tiveram uma habitação espaçosa, limpa e arejada, com uma varanda para a rua - e vistas para a confusão..Ainda assim, e como observa Miguel Izu no recente Hemingway en los Sanfermines, fruto de um formidável trabalho de investigação, as festas de Pamplona na década de 1920 nada tinham a ver com aquilo que se tornaram na era do turismo de massas. A cidade tinha então uns 35 mil habitantes (actualmente, tem mais de 200 mil), os sanfermines eram tão-só umas festas locais sem quaisquer pretensões de glamour ou devaneios de cosmopolitismo. Poucos tinham o hábito de correr com os touros, divertimento de alguns rapazes das classes mais populares que as elites da terra desprezavam, preferindo os bailes selectos do Nuevo Casino ou, quando muito, o cinema mudo projectado a céu aberto na Plaza del Castillo. Não era sequer costume que os jovens que corriam com os touros fossem vestidos de branco, com um lenço vermelho ao pescoço. Por muito que custe dizê-lo, nos rituais das festas de San Firmín há várias coisas que remetem para aquilo a que alguns historiadores ingleses chamaram a "invenção da tradição", práticas e liturgias que foram concebidas deliberada e artificialmente para parecerem ancestrais e remotas. Uma coisa, contudo, era bem antiga e omnipresente desde tempos imemoriais: o ruído ensurdecedor (ou não estivéssemos em Espanha...). Na primeira noite que passou em Pamplona, o casal Hemingway praticamente não dormiu, tal era o barulho dos tambores, das músicas e dos bailes pelas ruas da cidade..Ao raiar da aurora, o toque de uma banda militar fê-los despertar do vago sono. Vendo que uma multidão se dirigia para o mesmo sítio, comandada pelo toque da banda e o som da fanfarra, os Hemingway desceram à rua, juntaram-se ao cortejo, acabaram às portas da praça de touros, onde pagaram um dólar para poderem entrar e assistir ao final do encierro, a corrida demencial ao longo de cerca de 850 metros pelas ruas apertadas do centro histórico. À época, Ernest Hemingway pouco sabia o que era aquilo, não era sequer capaz de escrever correctamente o nome da cidade ("Pampaluna", chamou-lhe numa carta à mãe), dizia que os touros tinham "quase mil quilos de peso", julgava que as festas taurinas de Pamplona remontavam aos primórdios da Idade Média, situando a sua génese no ano de 1126, quando, na realidade, só em finais do século XIV a feira agrícola começou a ser acompanhada de espectáculos tauromáquicos..As festas de 1923 tiveram uma particularidade estranha. Na madrugada do dia 10 de Julho - em plena época de festas, que decorrem de 6 a 14 desse mês -, um violento terramoto abalou Pamplona e, logo a seguir, a cidade foi assolada por chuvas tremendas, incessantes, que obrigaram ao adiamento de algumas corridas. Hadley contraiu uma gripe séria, mas ainda assim não faltou às cinco corridas dessa temporada, acompanhando o marido em todas as ocasiões e, curiosamente, não se deixando impressionar pelo martírio dos cavalos dos picadores nem pela morte dos touros na arena. Nos momentos mais bárbaros, baixava os olhos para o pano que estava a bordar e deixava que o pior passasse. Ernest, pelo contrário, não perdia um minuto do cruel espectáculo, absorvia tudo quanto via com a avidez de uma criança e, ao fim de pouco tempo, claro está, já estava a opinar sobre a qualidade das lides e dos matadores como se fosse um velho entendido. Os seus favoritos foram o sevilhano Maera, da quadrilha de Belmonte, e, sobretudo, Nicanor Villalta, que tomara alternativa no ano anterior, na antiga praça de touros de San Sebastián. A paixão de Hemingway por ele foi tal que, quando o seu filho nasceu, em Toronto, em Outubro desse ano, decidiu pôr Nicanor no seu nome. John Hadley "Jack" Nicanor Hemingway, a que em criança chamavam carinhosamente "Bumby", ostentou até ao final dos seus dias o nome de um matador espanhol, o que é decerto irónico se pensarmos que, além de um celebrado pescador de trutas e de salmões, de renome mundial, Jack Hemingway foi um ardente ecologista e defensor da vida selvagem (e, claro, pai de Margaux e de Mariel Hemingway)..De regresso a Paris, Hemingway escreveu uma carta entusiástica a um amigo de Chicago, seu camarada na unidade de ambulâncias da Cruz Vermelha durante a guerra. Disse-lhe que aqueles dias tinham sido dos melhores que ele e Hadley tinham passado em muito tempo. Descreveu as gentes com os clichés da praxe ("rostos de bêbados de Velázquez", "caras de Goya e de Greco"), falou da música e dos touros, exagerou na dimensão do encierro e no tamanho dos Gigantes, que disse terem nove metros de altura, quando não chegam sequer a metade..Aqueles dias em Pamplona deram-lhe a matéria de que necessitava para a sua escrita, e muitos dos lugares onde esteve acabam por surgir, com nomes reais ou fictícios, em toda a trama de Fiesta: o Café Iruña, fundado em 1888, ainda hoje aberto; o Suizo, que fechou portas em 1952; o Torino, encerrado em 1971, a que Hemingway chamou Milano, decerto por ter sido a cidade onde esteve em convalescença após ter sido ferido em combate. E também o El Gran Hotel, desaparecido há muito, e, acima de tudo, o Hotel Quintana, que no livro surge como Hotel Montoya..Estando montado o cenário, faltava fazer entrar as personagens. Chegarão no ano seguinte, decadentes e ruidosas. Mas, depois da sua passagem, nada mais seria o mesmo: nem Pamplona, nem o mundo, nem os touros, nem a literatura, nem mesmo o Sol, que a cada dia se ergue, indiferente às nossas tristes misérias..(Continua).Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
De quantas lendas se faz uma história? Ele esteve lá, é certo, e várias vezes, mas não tantas quanto se fala. Nem foi o primeiro, ao contrário do que muitos dizem. Sem ele, contudo, a história não seria a mesma. Ernest Hemingway descobriu Pamplona e os sanfermines em Julho de 1923. Regressaria mais vezes, antes e depois da Guerra Civil Espanhola. Mas, ao invés do que conta a lenda, e do que ainda hoje se diz sobre a sua celebrada afición, não foi o primeiro estrangeiro a visitar as festas de Pamplona, nem sequer o primeiro turista de língua inglesa a deslocar-se lá. O escritor contribuiu para o mito e, nos anos 20, proclamou aos quatro ventos que, naquele Verão de 1923, ele e a mulher tinham sido os únicos estrangeiros na cidade. A afirmação era tão falsa, tão escandalosamente falsa - e logo desmentida pelo testemunho de outros estrangeiros que também estiveram em Pamplona em Julho de 1923 -, que Hemingway teve o bom senso de a corrigir anos depois em O Verão Perigoso, o relato da rivalidade épica entre Luis Miguel Dominguín e o seu cunhado Antonio Ordóñez na histórica temporada de 1959..Quando visitou Pamplona pela primeira vez, Hemingway vivia em Paris como correspondente do The Toronto Star Weekly e aspirante a escritor. Descreverá a experiência, "o tempo em que éramos muito pobres e muito felizes", em páginas enternecedoras de Paris É Uma Festa, onde, uma vez mais, a pulsão da fantasia se sobrepôs esmagadoramente à nudez crua da verdade. Ernest e a primeira mulher, a antiga pianista Elizabeth Hadley Richardson, passaram algumas dificuldades em França, mas nem ele nem os demais membros da "geração perdida" - o termo imorredouro que Gertrude Stein ouvira da boca de um mecânico numa garagem em Paris e com o qual definiu para sempre o perfil da geração do entreguerras -, nem Hemingway nem os seus camaradas de escrita e de farra, insiste-se, conheceram a pobreza ou viveram sob o espectro da penúria..Hadley recebia uma pensão confortável da mãe e, não muito depois, herdará uma quantia volumosa de uma tia solteira e rica. Ernest tinha um emprego fixo que lhe garantia um salário razoável e pago em moeda forte. Paris era então uma cidade acessível para os que vinham do lado de lá do Atlântico e os jovens da lost generation não eram assim tão perdidos, pois sabiam que, em caso de aperto, nunca lhes faltaria o generoso e maternal amparo de Gertrude Stein. Não viviam à larga, é certo, mas as histórias de miséria que Hemingway conta em Paris É Uma Festa, como a dos tempos em que só tinha jantar se conseguisse apanhar um pombo incauto numa praça ou num jardim da Cidade-Luz, só parcialmente são verdadeiras. Hemingway e a mulher tinham uma ama para o filho acabado de nascer, viajavam amiúde pela Europa (à Itália, à Alemanha para pescar, à Suíça para esquiar), frequentavam cafés e restaurantes da moda, os quais, ainda que não sendo de luxo, eram os lugares de eleição dos intelectuais e dos artistas da Paris do pós-guerra..Gertrude Stein e Alice B. Toklas, sua amante, eram aficionadas, tinham estado em Espanha para assistir a corridas de touros, mostraram ao jovem Hemingway fotografias suas na Praça de Valência, ao lado de Joselito e de Gallo, imagens certamente captadas em 1915, quando as duas passaram uma larga temporada em Palma de Maiorca para fugir à guerra. Mesmo sem ter ainda presenciado uma corrida, Ernest possuía já uma enorme curiosidade pela tauromaquia, sobre a qual escrevera um breve conto para a The Little Review, em que o protagonista, um jovem toureiro, se vê na contingência de ter de matar todos os touros da festa, uma vez que os outros matadores tinham sido colhidos durante as suas faenas. Como escreverá em Morte à Tarde, uma praça de touros era o único lugar onde, em tempos de paz, se podia observar de perto a morte violenta, e, como escritor, o seu principal interesse eram as coisas simples, nada existindo de mais simples e essencial do que uma morte violenta..Esteve fugazmente em Espanha em 1919, quando fez escala em Algeciras no regresso aos Estados Unidos, vindo de Itália e da Grande Guerra; e em 1921, quando o navio que o levava a França parou em Vigo, cuja baía o deixou fascinado e lhe deu ensejo para escrever um artigo sobre a pesca do atum-azul, "o rei dos peixes". Agora, na Primavera de 1923, ia finalmente conhecer a Ibéria lendária. Partiu de Paris com o seu amigo e editor Robert McAlmon, que custeou a viagem, hospedaram-se na Pensión Aguilar, em Madrid, pouso habitual dos toureiros e dos seus empresários. Dias mais tarde, juntou-se-lhes Bill Bird, jornalista, também ele a residir na capital francesa..A jornada começou, evidentemente, pelo cochinillo assado do Sobrino de Botín, hoje infestado de turistas russos e chineses atraídos pela placa do Guinness que assegura ser aquele o mais antigo restaurante do mundo ainda em funcionamento. Além dos almoços pantagruélicos, de que existem ecos em Fiesta, como na esmagadora cena final entre Jake e Brett, Hemingway e os seus amigos foram ao Prado ver os quadros de El Greco e, obviamente, não perderam as corridas de touros. A primeira delas em 27 de Maio de 1923, na Praça de Fuente del Berro, ou da Carretera de Aragón, mais tarde demolida e substituída pela monumental Las Ventas. Como viajantes empenhados, foram também a Aranjuez, a Sevilha, à assombrosa Ronda (onde hoje existe um busto do escritor, e outro de Orson Welles) e a Granada. Houve episódios caricatos, como o de um leque comprado em Sevilha, muito típico, mas cuja etiqueta confessava, envergonhada, "made in Japan". E houve touros, muitos..Para os americanos, o mais impressionante era o martírio dos cavalos dos picadores, à época ainda não protegidos das investidas dos touros, frequentemente mortais (como refere José María de Cossío no clássico e enciclopédico Los Toros, só em 1932, e mediante concurso, foi aprovado regulamentarmente o modelo da capa protectora do peito dos cavalos dos picadores, num material flexível mas resistente). Os espanhóis estavam habituados a assistir àquela barbárie, não se incomodavam de ver cavalos moribundos a rastejar na arena, esventrados, com as tripas de fora, um vendaval de sangue. Muitos estrangeiros desmaiavam, outros desviavam o olhar, outros ainda só suportavam a cena grotesca depois de toldados por várias doses de whisky. Hemingway, como é óbvio, fazia gala em ser diferente, muito forte e macho, em mostrar que era capaz de aguentar tudo aquilo com o mesmo ar impassível com que presenciara as atrocidades de uma guerra há pouco terminada. Segundo ele, Espanha era o único país da Europa que não fora devastado por essa guerra e, de todos os povos do Velho Continente, os espanhóis foram os únicos que conseguiram manter as tradições genuínas e a autenticidade de carácter em tempos tão sombrios e adversos..Não muito depois da primeira viagem, regressou. No início de Julho de 1923, Ernest Hemingway e a mulher rumaram até Pamplona, para a festa de San Fermín. Hadley estava grávida de seis meses, prestes a ter o primeiro filho, mas nem isso os dissuadiu. Pelo contrário, Hemingway, sempre obcecado com a virilidade (um traço de carácter que terá influência decisiva no seu suicídio brutal, em 1961), considerava um bom augúrio que o seu primogénito varão fosse bafejado pelo som e pela fúria das corridas de touros, que conhecesse o odor da morte antes sequer de nascer, como o escritor dirá nas cartas que mandou para casa, para a sua mãe e para uma amiga de infância em Oak Park..O casal chegou a Pamplona ao final da tarde de 6 de Julho, o primeiro dia das festas bravas. A cidade estava inundada de forasteiros, nas ruas acumulavam-se massas compactas de gente ruidosa. A partir de Paris, os Hemingway tinham reservado quarto num hotel do centro, na Plaza de la Constitución, o La Perla. Construído em 1881, ainda hoje em funcionamento, o La Perla era então gerido por uma família de simpatias nacionalistas, cujo patriarca seria mais tarde chefe da Falange em Navarra, membro da Junta de Burgos, procurador às Cortes em representação do sindicato vertical de hotelaria e governador civil de Badajoz nos primeiros tempos do franquismo. Não foi isso, porém, que demoveu Hemingway de se hospedar lá, mas sim a raiva que lhe causou o oportunismo da dona do hotel, que não só jurava não ter qualquer reserva em seu nome (quando ele tivera o cuidado de enviar um telegrama e uma carta com várias semanas de antecedência) como lhe exigia o preço exorbitante de dez dólares por uma diária. Tinham dinheiro mais do que suficiente para pagar essa quantia, mas Ernest odiava ser enganado e, após uma altercação violenta com a dona do La Perla, fixou-se num quarto de uma casa particular no n.º 5 da Calle Hilarión Eslava, por cima de uma farmácia que ainda hoje existe. Por cinco dólares, metade do preço, tiveram uma habitação espaçosa, limpa e arejada, com uma varanda para a rua - e vistas para a confusão..Ainda assim, e como observa Miguel Izu no recente Hemingway en los Sanfermines, fruto de um formidável trabalho de investigação, as festas de Pamplona na década de 1920 nada tinham a ver com aquilo que se tornaram na era do turismo de massas. A cidade tinha então uns 35 mil habitantes (actualmente, tem mais de 200 mil), os sanfermines eram tão-só umas festas locais sem quaisquer pretensões de glamour ou devaneios de cosmopolitismo. Poucos tinham o hábito de correr com os touros, divertimento de alguns rapazes das classes mais populares que as elites da terra desprezavam, preferindo os bailes selectos do Nuevo Casino ou, quando muito, o cinema mudo projectado a céu aberto na Plaza del Castillo. Não era sequer costume que os jovens que corriam com os touros fossem vestidos de branco, com um lenço vermelho ao pescoço. Por muito que custe dizê-lo, nos rituais das festas de San Firmín há várias coisas que remetem para aquilo a que alguns historiadores ingleses chamaram a "invenção da tradição", práticas e liturgias que foram concebidas deliberada e artificialmente para parecerem ancestrais e remotas. Uma coisa, contudo, era bem antiga e omnipresente desde tempos imemoriais: o ruído ensurdecedor (ou não estivéssemos em Espanha...). Na primeira noite que passou em Pamplona, o casal Hemingway praticamente não dormiu, tal era o barulho dos tambores, das músicas e dos bailes pelas ruas da cidade..Ao raiar da aurora, o toque de uma banda militar fê-los despertar do vago sono. Vendo que uma multidão se dirigia para o mesmo sítio, comandada pelo toque da banda e o som da fanfarra, os Hemingway desceram à rua, juntaram-se ao cortejo, acabaram às portas da praça de touros, onde pagaram um dólar para poderem entrar e assistir ao final do encierro, a corrida demencial ao longo de cerca de 850 metros pelas ruas apertadas do centro histórico. À época, Ernest Hemingway pouco sabia o que era aquilo, não era sequer capaz de escrever correctamente o nome da cidade ("Pampaluna", chamou-lhe numa carta à mãe), dizia que os touros tinham "quase mil quilos de peso", julgava que as festas taurinas de Pamplona remontavam aos primórdios da Idade Média, situando a sua génese no ano de 1126, quando, na realidade, só em finais do século XIV a feira agrícola começou a ser acompanhada de espectáculos tauromáquicos..As festas de 1923 tiveram uma particularidade estranha. Na madrugada do dia 10 de Julho - em plena época de festas, que decorrem de 6 a 14 desse mês -, um violento terramoto abalou Pamplona e, logo a seguir, a cidade foi assolada por chuvas tremendas, incessantes, que obrigaram ao adiamento de algumas corridas. Hadley contraiu uma gripe séria, mas ainda assim não faltou às cinco corridas dessa temporada, acompanhando o marido em todas as ocasiões e, curiosamente, não se deixando impressionar pelo martírio dos cavalos dos picadores nem pela morte dos touros na arena. Nos momentos mais bárbaros, baixava os olhos para o pano que estava a bordar e deixava que o pior passasse. Ernest, pelo contrário, não perdia um minuto do cruel espectáculo, absorvia tudo quanto via com a avidez de uma criança e, ao fim de pouco tempo, claro está, já estava a opinar sobre a qualidade das lides e dos matadores como se fosse um velho entendido. Os seus favoritos foram o sevilhano Maera, da quadrilha de Belmonte, e, sobretudo, Nicanor Villalta, que tomara alternativa no ano anterior, na antiga praça de touros de San Sebastián. A paixão de Hemingway por ele foi tal que, quando o seu filho nasceu, em Toronto, em Outubro desse ano, decidiu pôr Nicanor no seu nome. John Hadley "Jack" Nicanor Hemingway, a que em criança chamavam carinhosamente "Bumby", ostentou até ao final dos seus dias o nome de um matador espanhol, o que é decerto irónico se pensarmos que, além de um celebrado pescador de trutas e de salmões, de renome mundial, Jack Hemingway foi um ardente ecologista e defensor da vida selvagem (e, claro, pai de Margaux e de Mariel Hemingway)..De regresso a Paris, Hemingway escreveu uma carta entusiástica a um amigo de Chicago, seu camarada na unidade de ambulâncias da Cruz Vermelha durante a guerra. Disse-lhe que aqueles dias tinham sido dos melhores que ele e Hadley tinham passado em muito tempo. Descreveu as gentes com os clichés da praxe ("rostos de bêbados de Velázquez", "caras de Goya e de Greco"), falou da música e dos touros, exagerou na dimensão do encierro e no tamanho dos Gigantes, que disse terem nove metros de altura, quando não chegam sequer a metade..Aqueles dias em Pamplona deram-lhe a matéria de que necessitava para a sua escrita, e muitos dos lugares onde esteve acabam por surgir, com nomes reais ou fictícios, em toda a trama de Fiesta: o Café Iruña, fundado em 1888, ainda hoje aberto; o Suizo, que fechou portas em 1952; o Torino, encerrado em 1971, a que Hemingway chamou Milano, decerto por ter sido a cidade onde esteve em convalescença após ter sido ferido em combate. E também o El Gran Hotel, desaparecido há muito, e, acima de tudo, o Hotel Quintana, que no livro surge como Hotel Montoya..Estando montado o cenário, faltava fazer entrar as personagens. Chegarão no ano seguinte, decadentes e ruidosas. Mas, depois da sua passagem, nada mais seria o mesmo: nem Pamplona, nem o mundo, nem os touros, nem a literatura, nem mesmo o Sol, que a cada dia se ergue, indiferente às nossas tristes misérias..(Continua).Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.