A febre dos livros adoeceu a Inglaterra do século XIX

No século XIX, um frenesim pela acumulação de livros correu Inglaterra. O médico e poeta John Ferriar referiu-se-lhe como bibliomania. Thomas Frognall Dibdin, bibliógrafo, estudou-lhe causas e consequências e publicou-as em livro. Entre os acumuladores, destacou-se Richard Heber e Thomas Phillipps.
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A 17 de junho de 1812, o político inglês e também colecionador de antiguidades e livros George Spencer-Churchill, recebeu em mãos o troféu pelo qual desembolsara 2260 libras. Nos 40 dias antecedentes, Spencer travara uma guerra de lances no leilão do recheio de uma das mais importantes bibliotecas privadas da época, a de John Ker, terceiro Duque de Roxburghe, falecido em 1804. Entre os mais de 10 mil itens leiloados, colecionados ao longo de quatro décadas, um livro em particular, uma edição impressa de uma obra do século XIV, acirrara os ânimos em Londres. Decameron, do poeta italiano Giovanni Boccaccio, tornara-se o prémio mais apetecido do leilão. Impresso em 1471 pelo tipógrafo alemão Christophorus Valdarfer, o incunábulo (termo que alude a livros impressos antes de 1500) da obra de Boccaccio tornou-se, nas mãos de Spencer-Churchill, no livro a atingir um maior valor de venda em leilão.

Como forma de celebrar o sucesso da hasta milionária, um grupo de 18 colecionadores de livros reuniu-se num jantar informal. O encontro de bibliófilos na St. Albans Tavern marcou a fundação de um dos mais exclusivos clubes literários ingleses. Do seu nascimento até à atualidade, o Roxburghe Club acolheu somente 356 membros e foi responsável pela impressão ou reimpressão de perto de 300 textos e livros raros.

Presente no jantar inaugural do Roxburghe Club e no leilão que lhe antecedeu, por si descrito como um ato de "carnificina e frenesim", esteve o clérigo Thomas Frognall Dibdin. Bibliógrafo inglês, nascido no ano de 1776, em Calcutá, Índia, Dibdin assinou uma obra literária com ambições enciclopédicas. O autor ganharia notoriedade ao tratar em livro uma das manias que afligia a classe média e alta britânica no século XIX, a Bibliomania.

Definida como a acumulação compulsiva de livros ao ponto de prejudicar as relações sociais e a saúde, o termo Bibliomania viu-se cunhado em 1809 pelo poeta e médico inglês John Ferriar. O homem que se dedicou a estudar as causas da febre tifoide e a introduzir inúmeras reformas sanitárias, olhou para a compulsão pela aquisição de livros do seu amigo Richard Heber para a descrever em poema.

Nascido no ano de 1773 em Westminster, Heber desenvolveu desde a infância o gosto por colecionar livros para, na juventude, iniciar uma biblioteca de temas clássicos e literatura inglesa antiga. Richard Heber, entre os membros fundadores do Roxburghe Club, somava a compra de bibliotecas completas e uma demanda de livros à escala europeia, com aquisições em Paris, Antuérpia, Bruxelas, Gante, entre outras cidades. Thomas Campbell, poeta escocês, descreveu-o como "o mais feroz e forte de todos os bibliómanos". Uma ferocidade traduzível em dimensão. A biblioteca de Heber expandiu-se até ocupar oito casas em diferentes países. Samuel Austin Allibone, escritor e bibliógrafo norte-americano, estimou no seu A Critical Dictionary of English Literature and British and American Authors, publicado entre 1858 e 1871, que a biblioteca de Heber continha mais de 113 mil volumes em Inglaterra, com outros 33 mil a ocuparem estantes em França e nos Países Baixos. A venda da biblioteca de Richard Heber, após a sua morte em 1833, prolongar-se-ia por mais de 200 dias.

A Dibdin não escapou o caráter bibliomaníaco do conterrâneo inglês, para o descrever com subtil ironia: "Nenhum cavalheiro pode ficar sem três exemplares de um livro, um para exibição, um para uso e um para empréstimo". Uma escrita mordaz a propósito de uma mania do período romântico que Thomas Dibdin ampliara na obra que assinou em 1809. Em Bibliomania, or Book Madness - A Bibliographical Romance, Dibdin escreve um tratado que diagnostica, explana e procura tratar a "doença do livro". Maleita "que até chamar a atenção do Dr. Ferriar, escapou inteiramente à sagacidade de todos os médicos antigos e modernos", esclarece o autor no preâmbulo ao seu livro.

A obra de caráter satírico, faz do desfilar dos diálogos, mote para escarnecer dos hábitos acumuladores da época. Dibdin traça-lhes o perfil nas páginas de Bibliomania (disponível para leitura gratuita online): "Ao tratar da história desta doença descobrir-se-á (...) que quase exclusivamente limitou os seus ataques aos elementos do sexo masculino e, entre eles, às pessoas das classes média e alta da sociedade, enquanto o artífice, o trabalhador e o camponês escaparam totalmente ilesos. Tem-se espalhado principalmente em palácios, castelos, salões e mansões. O que a torna particularmente formidável é a sua ocorrência em todas as estações do ano e em todas as idades".

Os diálogos tecidos por Dibdin no seu livro mereceram robusta aceitação por parte de leitores da época, entre eles bibliófilos e colecionadores de livros que assistiam à inflação dos valores no mercado livreiro por força da procura insaciável dos bibliomaníacos, nomeadamente por exemplares de primeiras edições. Das 80 páginas da edição original, Bibliomania cresceu para as 800 páginas em 1811, assumindo a forma de romance bibliográfico em seis partes, com edições posteriores em 1842, 1856 e 1876. O autor expunha os sintomas da bibliomania: "Obsessão por exemplares cujas orlas das páginas não foram cortadas pelas ferramentas dos encadernadores [o traço "mais extraordinário", segundo o autor], cópias únicas, primeiras edições, cópias ilustradas", entre outras.

Na primeira metade do século XX, o jornalista britânico George Holbrook, nascido em 1874, trouxe uma nova abordagem à bibliomania de Ferriar e Dibdin. Em Anatomy of Bibliomania, obra de 1930, Holbrook vê-a como uma paixão exacerbada pelos livros, mas também uma "mania genial, menos prejudicial do que a sanidade dos sãos".

Antes, em 1862, John Ruskin, crítico de arte e aguarelista britânico, publicou na Fraser"s Magazine for Town and Country, um ensaio -- Munera Pulveris -- que abonava a favor do bibliómano. Na escrita de Ruskin "um homem pode pagar qualquer preço para equipar o seu estábulo ou a sua adega e receber com isso a aprovação pública; mas se der quantia idêntica para prover a sua biblioteca, é chamado de louco ou bibliomaníaco. E embora possa perder a sua fortuna devido aos cavalos, e a sua saúde ou vida na adega, nunca será apelidado de hipomaníaco, nem de oniomaníaco, porque o valor atual do dinheiro foi entendido como legitimamente fundado em gado e vinho, mas não em literatura".

A compulsão pela aquisição de livros não é estranha à vida de Thomas Phillipps. Inglês, nascido em 1792, Phillipps destacou-se como antiquário e colecionador de livros, tido como um dos maiores acumuladores da história de material manuscrito e impresso. Uma devoção que levou Thomas Phillipps à aquisição de cerca de 40 mil obras impressas e 60 mil manuscritos. Sobre a casa do bibliómano comentou o paleógrafo Frederic Madden após uma visita: "Nos quartos amontoam-se pilhas de papéis e livros sobre mesas, camas, cadeiras, escadas. É bastante repugnante. As janelas da casa nunca são abertas e o ar ali confinado é quase insuportável".

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