A febre do cantor que saiu do museu de arte e entrou no estádio

A febre Salvador Sobral contagiou meio mundo e até as casas de apostas, que estão imunes a estados de alma, dão o português como favorito à final desta noite (20.00) do Festival da Eurovisão em Kiev. Novo modelo do concurso nacional deu início ao fenómeno.
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A seguir as modas dir-se-ia que é um hype, mas usar um anglicismo para um dos raros concorrentes a cantar na língua materna seria, no mínimo, desacertado: Salvador Sobral e o tema Amar pelos Dois são uma febre.

Vários indicadores confirmam que o frenesi, com origem em território nacional, espalhou-se pela Europa e além. No YouTube, a 30 horas do início da final, as atuações em direto das semifinais do Festival Eurovisão da Canção dão ao representante português um avanço de popularidade: o vídeo de Salvador Sobral foi visto mais de 1 152 000 vezes. Em segundo, a belga Blanche, com 732 mil visualizações, e o terceiro, dos moldavos Sunstroke Project, com 605 mil.

O favorito nas casas de apostas era até ontem Francesco Gabbani - mas foi ultrapassado por Salvador Sobral. A página Eurovisionworld, que reúne apostas de 18 casas de jogo, dá o português como o novo favorito. Só em cinco casas de apostas rende menos a vitória do intérprete de Occidentali"s Karma (e do homem vestido de gorila que o acompanha). Em comparação com os semifinalistas mais procurados na internet, a atuação do transalpino, na terça-feira, no momento em que decorria o televoto (a Itália tem o lugar assegurado na final) despertou o interesse por 435 mil vezes no YouTube.

Noutro indicador, a Google fez uma extrapolação a partir das pesquisas por artista no seu motor de busca nos países da Eurovisão e Austrália (que também participa). O número de buscas converte-se em pontos, mas as pesquisas do artista no próprio país não contam. Segundo este método, Portugal lidera com enorme vantagem: 428 pontos. O top cinco é composto por Austrália (298 pontos), Bélgica (240), Bulgária (227)e Suécia (198). Se retirarmos a Austrália e incluirmos a Itália, são estes também os países dos artistas que lideram as apostas.

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Só na compra de música é que Salvador Sobral não está, pelo menos para já, à frente. Após a meia--final de terça-feira, City Lights de Blanche chegou ao top 10 do iTunes em vários países europeus. Amar pelos Dois ascendeu ao primeiro posto da lista de Portugal, é certo, e aos primeiros dez na Suécia e Lituânia, mas não alcançou tantos lugares cimeiros no resto da Europa.

Festival remodelado

Amar pelos Dois pegou de estaca. O tema, da autoria de Luísa Sobral e interpretado de forma única pelo irmão, tem outra entidade a receber crédito: a estação pública de televisão. Ao DN, Gonçalo Madaíl, subdiretor da RTP1, que faz parte da delegação portuguesa na capital ucraniana, explica que a ausência, no ano passado, acabou por ter um efeito positivo. "Fizemos uma reunião alargada em 2016 com fãs, antigos participantes, alguns representantes da comunidade artística."

Além desse fórum, juntaram a uma equipa de trabalho da RTP dois consultores, Nuno Galopim, jornalista e crítico de música, e Henrique Amaro, radialista da Antena 3. "Foi com eles que começámos a desenhar quem poderiam ser os 16 artistas que representassem a atualidade da composição em Portugal nas várias gerações. Sem querer criar um festival alternativo ou mais in, porque fomos do Noiserv ao Jorge Fernando. A preocupação foi mantermos uma atitude eclética do ponto de vista artístico." E lembra que logo de início o regresso ao Festival da Canção ganhou pernas para andar: "Ao mesmo tempo que a RTP criava este crivo, mantinha uma liberdade de escolha com a ideia de serem os compositores a selecionar os seus intérpretes. A mentalidade aberta com que todos se apresentaram trouxe-nos um festival muito fresco, mas que batia a todas as portas", refere ainda.

Com a RTP a comemorar o 60.º aniversário durante este ano, a opção foi por realizar a final do Festival da Canção a 5 de março, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, marcando o arranque das celebrações. Apesar de todas as alterações, Gonçalo Madaíl admite que não estavam à espera de uma adesão tão grande por parte do público. Nem do nacional nem do internacional. "Houve um momento inesperado, não o podemos negar, chamado Salvador. Eram muitos os artistas, muitos conhecidos de todos nós, mas ninguém pensou que nos aparecesse esta pérola, um miúdo que tem uma linguagem e atitude muito próprias, mas ao mesmo tempo muito pura e muito aberta, com um fair-play quase cómico. Aqui em Kiev fez connosco o processo de conhecer a dimensão deste evento. Isto para ele é como entrar no estádio de futebol do Real Madrid vindo do Museu de Arte Antiga. Ele tem sido de uma generosidade fantástica connosco. Pergunta-nos muitas vezes: "Vocês estão felizes? A RTP está feliz? Então eu também fico feliz." Isto diz tudo."

Mais, adianta: "Uma coisa é querermos empenharmo-nos e esforçarmo-nos para melhorar este conteúdo, por outro lado saiu-nos a sorte grande com o Salvador. Há qualquer coisa nele que mexe com as pessoas. Todos os que nos contactam das outras delegações dizem-nos: "Não percebemos nada da letra mas compreendemos perfeitamente a música e isto entra-nos como se fosse na nossa própria língua.""

Também a organização do festival olha para a estação pública e para Salvador de forma especial. "Perceberam que temos um bem precioso na mão, souberam relativizar a própria condição do Salvador", conta, referindo-se aos ensaios de Luísa Sobral a substituir o irmão que, por motivos de saúde, chegou a Kiev mais tarde do que a restante comitiva. "Eram questões meramente técnicas: testes de utilização do auricular e de luz. Ou seja, se alguém tinha algo a perder era o Salvador, porque tinha menos ensaios. Coisa que não o preocupou: chegou lá e fez aquilo com uma calma surreal."

Sobre a escolha do palco pequeno, no meio do público, Gonçalo Madaíl explica que "a Eurovisão permite aos países caracterizarem o momento da forma que entenderem no que respeita aos jogos de luz e de imagens. "Nós, desde o primeiro dia, insistimos na simplicidade." Uma opção oposta à da maioria dos concorrentes - "o festival é pirotecnia, truques e efeitos especiais", reconhece - "e o nosso pedido surpreendeu desde o início". Após terem ouvido a canção, os organizadores entraram no espírito de Amar pelos Dois: "Tornaram-se mais papistas do que o papa e brindaram-nos com a sugestão do palco pequeno. "É tão importante o momento artístico, só ele, a sua canção e a sua voz, que vos propomos esta possibilidade." E nós adorámos."

Salvador Sobral será o 11.º a atuar entre 26. E que lugar terá na classificação? "O próprio Salvador diz "a vitória já está", só com o que lhe aconteceu pelo mundo fora, vamos todos embora com um sorriso na boca", conta Gonçalo Madaíl.

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