A falsa cura da gripe com água de cebola que se espalha pelo TikTok

Publicações ganharam viralidade enquanto vários países enfrentam uma ameaça tripla de gripe, ​​​​​​​covid-19 e vírus sincical respiratório que sobrecarrega serviços de saúde.
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Se sabe mal é porque deve fazer bem, certo? Vídeos a promover receitas caseiras (e de levar às lágrimas) com cebola para curar a gripe são o mais recente exemplo de desinformação médica espalhada no TikTok, uma das mais populares redes sociais do momento, em especial entre os mais jovens. E são também, apontam especialistas, uma prova de como o acesso a literacia e cuidados de saúde baseados em evidências científicas estão fora do alcance de uma fatia importante da população em vários países - mesmo nos desenvolvidos, como os EUA.

Vídeos a exaltar as propriedades de uma mistura pungente feita através da imersão de cebolas cruas picadas em água, como se tratando de uma cura milagrosa para infeções respiratórias, ganharam dezenas de milhões de visualizações na influente plataforma, apesar de nenhuma evidência científica apoiar a propaganda.

Estas publicações ganharam viralidade numa altura em que vários países enfrentam a chamada "tripledemia": uma "pandemia" tripla de gripe, covid-19 e vírus sincical respiratório que sobrecarrega os serviços de saúde.

Cebolas em quantidades razoáveis não são consideradas prejudiciais - exceto pelo mau hálito - mas especialistas em saúde alertam que estes vídeos promovem uma crença cega em remédios caseiros simples que podem comprometer a saúde pública. "Cebolas não farão mal a ninguém, mas se alguém estiver doente, deve procurar atendimento médico de verdade", diz à AFP Katrine Wallace, epidemiologista e professora assistente da Universidade de Illinois em Chicago. "Tenho medo de que as pessoas apenas bebam água de cebola em vez de procurarem atendimento médico e possam espalhar a covid ou a gripe na comunidade."

A pseudociência divulgada no Tik Tok encontrou, no entanto, muitos seguidores, com a caixa de comentários dos vídeos cheias de declarações como "isso funcionou comigo!"

A tendência ilustra como o TikTok é inundado por influenciadores não qualificados que vendem desinformação, desde falsidades relacionadas a vacinas e abortos até mitos de saúde - geralmente para aumentar o nível de presença na rede e as visualizações - no que os especialistas dizem que pode ter um sério impacto nas decisões médicas.

Num dos vídeos mais populares do TikTok, que obteve já mais de 2,5 milhões de visualizações, uma mulher - cujo perfil não menciona suas qualificações e a descreve apenas como uma "filha da mãe natureza" - promoveu zelosamente os benefícios da água com cebola. Para maiores efeitos de cura, ela implora aos espectadores que fermentem a mistura durante horas para torná-la mais "potente".

"Adoramos uma cura milagrosa e, por alguma razão, parecemos pensar que quanto mais penoso for o consumo de um remédio, mais mágico será o seu efeito", diz Abbie Richards, investigadora dos fenómenos de desinformação e membro do Accelerationism Research Consortium, à AFP.

"Soluções simples para problemas complexos costumam ter bom destaque em algoritmos orientados para o engajamento, como é o caso do TikTok. Especialmente quando essas soluções são baratas e acessíveis em áreas onde, pelo contrário, a assistência médica baseada na ciência não é tão acessível."

Um porta-voz do TikTok disse à AFP que a plataforma remove conteúdo qualificado como desinformação médica que "provavelmente causa danos significativos". Os vídeos da solução de água com cebola, no entanto, não ultrapassaram o limite de "dano significativo" e, portanto, não foram removidos.

Essa abordagem, dizem muitos especialistas, realça o desafio enfrentado pelas plataformas de social media de encontrar formas de eliminar a desinformação sem dar aos utilizadores a impressão de que estão a censurar a liberdade de expressão.

Abbie Richards alerta que a "moderação excessiva" no caso dos vídeos a promover a "cura" de água com cebola pode acabar por sair pela culatra e "encorajar narrativas" de conspiração. Uma abordagem mais eficaz, diz, seria o TikTok garantir que informações precisas sobre saúde estejam "disponíveis, acessíveis e envolventes".

"Se o TikTok deve remover vídeos sobre remédios inúteis, não cabe a mim dizer", considera, por seu turno, Valerie Pavilonis, analista de desinformação no NewsGuard. "Ainda assim, mesmo que um suposto remédio inofensivo como beber água com cebola para resolver problemas de sinusite não o prejudique diretamente, pode fazê-lo pensar erroneamente que está a tratar o problema."

A popularidade dos vídeos reflete o que Richards chama de "falhas sistémicas" na área da saúde e é um alerta sobre a realidade de sociedades com cuidados médicos caros, dando o exemplo dos EUA, onde os dados do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças mostram que cerca de 30 milhões de americanos, ou 9% da população, não têm seguro de saúde e outros milhões têm coberturas "insuficientes".

"É muito fácil dizermos: "o melhor é conversar com o seu médico sobre tratamentos médicos"", aponta Richards. "Mas, numa sociedade com acesso limitado aos cuidados de saúde, com um sistema sobrecarregado e uma abordagem geralmente confusa à mais nova onda de doenças, não podemos ficar surpreendidos quando alguém começa a acreditar que a solução é beber água com cebola ou a colocar alho nos ouvidos".

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