A fábrica de bíblias

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P odia ser o título de um romance ou de um conto. Há paradoxo neste título. Fábrica: coisa mecânica, desumanizada e barulhenta; casa onde máquinas trabalham mecanicamente a imprimir a Palavra, a encadernar histórias, sermões, parábolas e epístolas; máquinas desalmadas a cuspir bíblias para alimentar almas carentes. Fábrica e bíblias são duas palavras que raramente se encontram na mesma frase. É assim com os bons títulos, um encontro inesperado de conceitos que, por se verem pela primeira vez na mesma frase, se estranham um ao outro e nos comunicam essa estranheza.

O assunto li-o em dois artigos no FT faz tempo. Voltei a ele agora porque dei de caras com uma Bíblia feita na China.

A fábrica em questão é em Nanjing. É a maior fábrica de bíblias do mundo e já produziu mais de 125 milhões de exemplares do livro. A estranheza e o paradoxo são ainda maiores quando, afinal, a religião, sobretudo as religiões estrangeiras, são ainda o ópio do povo na China e fortemente reprimidas. Sobretudo o cristianismo, que é olhado com desconfiança pelas autoridades, agora que a "doença" se espalha às classes médias. Ainda há pouco tempo alguns templos cristãos foram demolidos, e não é raro os crentes serem perseguidos e encarcerados. Talvez como medida profilática porque há cada vez mais milhões de cristãos na China; e, a manter--se o atual crescimento, estima-se que este seja o maior país cristão do mundo em meados deste século.

[E nós, do lado de cá do Crescente Fértil, seremos o quê em meados deste século? Pagãos? Desenterraremos velhos deuses que deem sentido à nacionalidade, ao grupo, à terra? Ou continuaremos apenas devotos de heróis elevados a semideuses pelos media? Fracas figuras, sem os superpoderes divinos que os homens necessitam que os deuses tenham.]

Mas voltando à China, onde há mais histórias com aquela qualidade lunática que tanto aprecia quem gosta de ficção. A principal envolve a aparição de Jesus Cristo em forma de mulher - já não era sem tempo!, afirmarão os militantes da igualdade de género. Em outubro do ano passado, um pai e um filho foram condenados à morte depois de terem assassinado uma mulher num McDonalds. A mulher tinha-se recusado a acompanhá-los a uma missa na Igreja do Senhor Todo Poderoso. Pai e filho faziam parte de um culto conhecido como O Raio Oriental, uma seita que crê que Jesus voltou à terra como uma mulher chinesa e viveu, até há bem pouco tempo, no centro da China. Em sua defesa, pai e filho declararam em tribunal que a mulher que tinham assassinado era um demónio que os atacou com poderes sobrenaturais. Seria um demónio? É possível. Tudo é possível na ficção e na religião. O Raio Oriental é apenas um dos muitos cultos milenaristas cujos crentes, numa espécie de luxúria do sofrimento, gostam da repressão, gostam de levar na cara como teste da sua fé. E levam. Faz parte do ritual.

Na América, entretanto, na zona conhecida como o Bible Belt, fazem-se ainda peditórios para comprar e enviar bíblias para os oprimidos cristão chineses. Bíblias que, provavelmente, são compradas e importadas da fábrica de Nanjing e depois reenviadas clandestinamente para a China.

Há uns anos, escrevi um pequeno conto, "A Fábrica de Bandeiras", onde ficcionava que a maior fábrica de Stars and Stripes do mundo ficava no Líbano e fornecia bandeiras americanas, para queimar no Médio Oriente, no crescente mercado do protesto contra o grande satã americano; um mercado que não dá mostras de arrefecer. Pálida ficção, comparada com a realidade.

Uma fábrica de bíblias na China, e a maior do mundo; americanos a comprar as bíblias lá produzidas para as reenviar clandestinamente de volta. Jesus renascido mulher no centro da China.

Estamos a meio, bem a meio, de um turbilhão de mudança cuja direção não vislumbramos. O único roteiro em que eu confio, para me guiar os passos e fazer sentido do que aí vem, é a ficção.

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