A extraordinária fábula dos brinquedos com sexo
Uma muralha cor-de-rosa separa os meninos das meninas à entrada do Toys'R'Us. Do lado delas há bebés, bonecas, bijutaria, máquinas de lavar roupa, ferros, vassouras e pás - tudo sempre em embalagens rosa- -rosa, de ferir o olhar. Do lado deles, uma mancha escura, azul soturno, de camiões, skates e pistolas. E se um crente na teoria da igualdade pedir a um funcionário orientação na busca de um brinquedo apropriado a uma criança de sete anos, é logo reconduzido à fronteira «Rapaz ou rapariga? Está tudo separado.»
No hipermercado Continente o recurso à cor repete-se azul e rosa, mas também verde para todos os brinquedos que a empresa não define em função do género. Para os mais daltónicos há letreiros a dividir os caminhos: «menino», «menina» e «didácticos». Isabel Guerra tem dois filhos rapazes, de 3 e 7 anos, que nunca entram na «zona rosa». Quando passam pelos corredores das bonecas sabem que «ali só há coisas de menina». Se pedissem Barbies, Isabel hesitaria «Conheço casos em que os miúdos só pedem bonecas, e os pais dão, mas não sei se faria o mesmo.»
Agarradas a um foguetão e a um descapotável, as duas netas de Berta Bessa invadem o universo masculino dos brinquedos inventado no hipermercado. Para a avó, «não faz sentido travar as crianças quando só querem brincar, com bonecas ou com carrinhos». E acusa alguns pais de, «com os seus preconceitos, limitarem a imaginação dos filhos».
«Não mexas nisso, é para menina.» Em Portugal existem, no entanto, lojas de brinquedos onde o universo não se divide em duas cores. É o caso da lisboeta Cristina Siopa, cuja dona, do mesmo nome, está no negócio há catorze anos, com artigos vocacionados para a classe média alta, de materiais nobres e design cuidado. «O nosso brinquedo não é muito diferenciado em função do sexo... Temos muitos jogos. Também há bonecas, claro, mas não somos nós que fazemos a divisão. Os clientes é que já chegam aqui com isso na cabeça, a pedir brinquedos para meninos e para meninas.» Mesmo para idades tenríssimas, espanta-se a comerciante «A priori, em pequeninos ainda não estão condicionados. Chegam aqui meninos de um ano, que já andam, e agarram-se a um carrinho de bonecas, por exemplo... E a mãe diz logo "Não mexas nisso, que é para meninas!" E eu digo, mas ele é tão pequenino, sabe lá o que é um menino e uma menina! As pessoas nem pensam, vem lá do fundo...»
Decidida a dar ao neto de um ano e meio «um fogão e tachinhos, porque ele adora coisas de cozinha», um gesto em que conta com a concordância do filho («Eduquei-o bem, ele faz tudo em casa»), Cristina Siopa questiona-se sobre a imutabilidade destes estereótipos e suas consequências. «Já há quem compre casas de bonecas para os rapazes, mas é muito raro. De um modo geral não noto muita evolução, mesmo nos meus clientes, jovens com meios e uma cultura razoável. Não põem em causa certas coisas. O que é estranho, porque, se o casal tem problemas com a divisão de tarefas, devia perceber que está a perpetuá-los na educação dos filhos.»
Maria Hélia Viegas, proprietária de dois estabelecimentos do ramo em Santarém, a loja Depois da Chuva e o armazém São Nicolau, tem a mesma percepção da colega. «Acontece muito os meninos, até aos cinco anos, quererem bonecas. Mas os pais reagem mal "Que disparate, para que queres isso? Não preferes antes este peluche?"» Há, reflecte, «um reduto dos rapazes, uma mentalidade que implica que os homens não podem perder tempo com certas coisas». Atribuindo essa visão «à imensa projecção efectuada pelos pais nos filhos», vê nela um escolho difícil de transpor.
« rapazes brincam com bonecas.» Mas a irmã do actor Mário Viegas faz o que pode. Criou para os seus pequenos clientes um lugar encantado no centro da capital ribatejana. O armazém S. Nicolau são sete salas plenas de brinquedos onde os deixa mexer no que lhes apetece sem ralhetes, porque, diz, «se alguma coisa se estragar na loja é porque não presta». E nesse espaço de liberdade, garante, «os rapazes brincam com bonecas». Como num infantário de uma aldeia das redondezas, onde se fez uma experiência notável «Entregavam bonecas aqui da loja, do sexo feminino e masculino, às crianças, durante um fim-de-semana, que tinham depois de trazer um texto escrito pelos pais sobre o que se passara. Fizeram-no com raparigas e rapazes, e foi muito bem aceite.»
Escândalo na escola. Muito diferente da creche de uma vila alentejana onde a alemã Pia Kramer, pedopsiquiatra e editora dos livros infantis Cobra Laranja, colocou o filho mais novo, de cinco anos. «Ele tem uma boneca que nunca larga, e levou-a para lá. Foi um escândalo. Eram os miúdos a reagir, mas sobretudo os educadores, que lhe diziam "Isso não é para meninos, os meninos brincam com carros".» Em vez de protestar na escola - «Iam dizer, olha a estrangeira vem dar-nos dar lições» -, Pia agiu junto do filho. «Reforcei-lhe a individualidade e a autocon- fiança, e ele con- tinuou com a sua boneca. Mas é muito preocupante. Há muita falta de reflexão sobre a educação e este medo disparatado de que os rapazes fiquem mariquinhas. São as pessoas que produzem a homossexualidade, ao marginalizar assim uma criança. Tenho duas filhas e é o menino que mais me preocupa, por causa desta coisa do "homem não chora", da "força", do restringir das escolhas dos rapazes. Tentamos contrariar isso na família, mas é difícil. A minha filha mais velha esteve num infantário em Frankfurt onde os educadores eram homens. E ela e os colegas vêem o mundo sem estas estranhas divisões: sentem que "eu posso entrar no teu mundo, tu podes entrar no meu". Enchem- -me de orgulho.»
* Com Ângela Marques