A Europa no ano de todas as dúvidas

"É difícil imaginar como poderiam homens que renunciaram inteiramente ao hábito de gerir os seus próprios assuntos ser bem-sucedidos a escolher quem os lidera. É impossível acreditar que um governo sábio, liberal e enérgico possa algum dia emergir de eleições numa nação de servos" - Alexis de Tocqueville
Publicado a
Atualizado a

Quase 60 anos depois, pelo menos duas das premissas do Tratado de Roma estão em causa - progresso económico e social eliminando barreiras entre os países e uma melhoria constante das condições de vida e de trabalho dos cidadãos. Já por lá passámos enquanto projeto de federação, mas parece que hoje, à beira de 2017, há forças divergentes e conflituantes na Europa. É esse, de resto, um dos grandes desafios das democracias liberais - saber se conseguem continuar a convencer os eleitores das virtudes de um sistema que não lhes garante progresso e prosperidade continuados, que não assegura que os filhos poderão aspirar a viver melhor que os pais.

Em meados do séc. XIX, Alexis de Tocqueville viajou pelos Estados Unidos e regressou a França com um misto de dúvida e fé em relação à aventura democrática americana - o governo do povo, pelo povo, para o povo. Uma federação de Estados. Uma experiência que a Europa ainda teme.

Hoje, a poucos dias de 2017, temos como certeza, apenas, que o novo ano vai ser marcado por incertezas, sobressaltos e desafios. Uma economia que teima em resistir a estímulos e que não consegue crescer para lá das feridas da crise de 2008; a crise demográfica; a questão da dívida pública e uma união económica e monetária ainda por concluir; a união bancária e um sistema financeiro com pontos frágeis em diversos países; o esgotamento da política monetária do BCE; a saída do Reino Unido; um espaço aberto, de livre circulação de pessoas e bens, mas com cada vez maior pressão para fechar-se sobre si próprio; uma crise de refugiados difícil de gerir perante eleitorados nacionais cada vez mais radicalizados; uma vaga de populismo e extremismo; o difícil equilíbrio entre segurança, defesa e orçamento comunitário; as eleições na Alemanha, França, Holanda, e provavelmente também em Itália; as relações com os EUA de Donald Trump, com a Rússia de Putin, e uma possível reconfiguração da NATO.

O DN ouviu diversos protagonistas e o tom não é o mais otimista. Silva Peneda, por exemplo, arrisca dizer que a Europa "está perante uma crise quase existencial". O conselheiro de Jean-Claude Juncker olha para 2017 e vê uma comunidade onde "nunca houve tão pouco entendimento entre os Estados-membros sobre problemas comuns. Os países preocupam-se apenas com os problemas internos, e o discurso sobre a Europa deixou praticamente de existir, nos responsáveis políticos, e os pontos comuns escasseiam". Do outro lado da política, a eurodeputada bloquista Marisa Matias afirma que "temos uma crise económica, uma crise social, uma crise dos sistemas políticos em diversos países europeus, com o crescimento dos nacionalismos e dos populismos. Podemos estar a falar de uma crise identitária na Europa". Paulo Rangel, de outra bancada do Parlamento Europeu, mais à direita, fala em "prognóstico seriamente reservado". Miguel Poiares Maduro, ex-ministro adjunto e professor no Instituto Universitário Europeu, aponta uma grande dificuldade: "estamos num ciclo vicioso: os problemas no funcionamento das democracias nacionais tornam quase impossível reconciliar interesses muito divergentes a nível europeu e isto conduz a uma incapacidade da UE em responder aos desafios concretos que enfrenta; esta incapacidade leva por sua vez uma crescente impopularidade da UE que é facilmente politicamente manipulada nas democracias nacionais, alimentando este ciclo vicioso". Carlos Moedas vê numa escolha básica o grande desafio da Europa no próximo ano. O comissário europeu afirma que o jogo, em 2017, será entre "os que acreditam que a Europa deve ser aberta, contra aqueles que acreditam que a Europa deve ser um sistema fechado. O mundo não se vai dividir entre esquerda e direita, mas entre aqueles que acreditam nos valores da abertura - o comércio livre e a ausência de fronteiras, por exemplo - e aqueles que acreditam exatamente no contrário, que deve haver fronteiras, que não deve haver comércio livre, e que as pessoas devem viver em países completamente fechados. A extrema-direita e a extrema-esquerda encontram-se precisamente nesse ponto"

Economia

Vamos a outra certeza - a Zona Euro (ZE) é, e vai continuar a ser ao longo de 2017, um sério problema. Há uns meses, em entrevista ao DN, Martin Wolf, colunista do Financial Times, falava da ZE como uma "máquina de produzir divergências". Vítor Bento não tem dúvidas em afirmar que "a Europa e em particular a zona euro têm ficado para trás nesta crise. Tem sido a região económica que pior tem lidado com a crise". O economista, chairman da SIBS, acrescenta que "o modelo da ZE não contempla os desequilíbrios externos, ou contempla-os de uma forma moralista, o que é errado do ponto de vista da teoria económica. Não entende que é um problema que tem inevitavelmente dois lados e que só é resolúvel tratando dos dois lados".

Ora, esses dois lados estão sobretudo dependentes da forma como a Alemanha, o motor económico da região, encara o problema. Enquanto apostar na poupança e nas exportações, reduzindo investimento e despesa - opções políticas absolutamente racionais em Berlim -, está a causar desequilíbrios, por falta de procura, noutras economias da ZE. O mesmo conjunto de regras que nos impõe um limite ao défice orçamental - a fronteira dos 3% para lá da qual um país entra no "procedimento por défice excessivo" - tem um teto para excedentes que nunca foi aplicado. O eurodeputado Paulo Rangel refere-se ao excedente comercial alemão lembrando um processo que nunca foi fechado, "a comissão devia exercer as suas competências. A comissão Barroso abriu o processo e a comissão Juncker esqueceu-o. E isso seria uma ajuda muito grande para alguns países, que têm mais dificuldades na ZE". Na leitura de Vítor Bento este é um dos principais desafios para a Alemanha, "como é que pode rever um modelo que tem sido a base do seu sucesso, reconhecendo a sua inaplicabilidade. Não consegue conceber que o excesso de competitividade é mau, porque contribui para desequilibrar a economia mundial". Sem moeda própria, logo sem capacidade para desvalorizar e restabelecer equilíbrios de competitividade, a Alemanha é uma das prisioneiras do Euro. Em ano de eleições, pouco ou nada mudará na política económica de Angela Merkel, até porque este é um problema mais vasto, como sublinha Miguel Poiares Maduro: "aquilo que é politicamente popular nos países do norte e do sul da Europa é, ao mesmo tempo, o que dificulta o compromisso necessário entre as suas diferentes vontades e preferências". Nuno Garoupa, professor na Universidade do Illinois, é taxativo: "a ortodoxia monetarista alemã continuará a impor-se, mesmo depois as eleições".

Margarida Marques, Secretária de Estado dos Assuntos Europeus, lembra que "as regras do pacto de estabilidade e crescimento têm servido mais para prevenir excessos no défice e na dívida, e não têm tido capacidade para levar os Estados membros com margem de manobra orçamental a desenvolverem políticas orçamentais mais expansivas". Mais à esquerda, João Ferreira, eurodeputado do PCP, defende uma mudança radical de políticas e afirma que "a manter-se este quadro, necessariamente aquilo que teremos será, no plano económico, um cenário de estagnação, e no plano social, a persistência do desemprego a níveis muito elevados, acima dos dois dígitos, com tudo o que lhe está associado, com problemas graves de exclusão e pobreza". Voltando à área socialista, Maria João Rodrigues, eurodeputada, antevê um tema chave para 2017 - o Orçamento da União: "vamos discutir as perspetivas orçamentais de médio prazo, portanto tem que haver um novo conceito de orçamento comunitário que responda a estes vários desafios, mas isso, só por si, também não vai chegar porque é também chegado o momento de reconhecer que a ZE deveria contar com um orçamento próprio e específico para permitir aos Estados membros que a compõem investir, mesmo nas situações de choque ou de divergência". Um ponto controverso, sem sombra de acordo, num cenário em que é necessário um "new deal para a zona euro, que teria que ser aceite por países como a Alemanha, fazendo ver a esses países que é do seu interesse que a zona euro no seu conjunto retome uma senda de crescimento". Ainda e sempre a questão do "comportamento" da maior economia da União.

"Crescimento e emprego" é um dos mantras mais repetidos nos últimos anos no discurso europeu. Uma agenda ainda por cumprir, e que ninguém acredita que possa ser recuperada em 2017. É o pessimismo, nunca assumido, a falar por outras palavras. Vítor Bento leva um pouco mais longe a previsão, e fala mesmo na hipótese de nova crise financeira, "há excesso de poupança nalguns países", diz, "e há outros que não conseguem ter poupança suficiente para o desenvolvimento da sua economia. A economia tem de ser rebalanceada, quer ao nível mundial, quer ao nível nacional. Isto só se faz ou pela via cooperativa, que até aqui tem falhado muito, ou à bruta, com muita turbulência. Não excluo uma nova crise financeira porque há excesso de poupança, que está a ser canalizada para ativos financeiros, inflacionando-os". Paulo Rangel avisa que "algum crescimento e algum emprego que seja criado, podem ser consumidos por uma crise de subida de juros, seja por uma diminuição do programa do BCE, seja por qualquer crise bancária que possa vir a ocorrer". Silva Peneda, conselheiro de Jean-Claude Juncker, resume o dilema desta forma: "ou a Alemanha se assume como verdadeiro líder da União Europeia, e passa a tomar decisões em termos de União Europeia e não em termos apenas do seu próprio umbigo, e aí podemos ter esperança no futuro; ou se a Alemanha usa até à última a estratégia de pensar apenas em si e marimbar-se para o resto, enfim, aí vai ser um colapso muito grande, e a desintegração do espaço europeu será uma realidade".

Com crescimento anémico e altas taxas de desemprego, em boa parte dos países da União cresce um sentimento de desespero, de abandono. A Alemanha é dos poucos países com classe média pujante, e não há reformas económicas sem classes médias prósperas. Silva Peneda considera que falta um "sentimento de confiança mais generalizado, que não existe hoje", e que não pode ser "fabricado" apenas com ajudas como o programa Juncker de investimento. A noção de que não há um progresso entre gerações, que é uma novidade para as democracias liberais, diz Vítor Bento, "vai ter repercussões na própria estabilidade dos sistemas políticos, e deste modelo político a que nós estamos habituados, e que consideramos ser o melhor. Não é por acaso que começam a surgir, não apenas soluções populistas, mas sobretudo soluções mais musculadas". Silva Peneda afirma que "a revolução tecnológica dos últimos anos levou a um aumento das desigualdades no espaço europeu, com altos salários para quem se adaptou e rendimento muito baixo para os outros. Esta também é uma realidade nova, e a classe política tem de saber lidar com esta situação". Não tem sabido. Pelo menos a classe política tradicional não tem conseguido adaptar-se a estes tempos de comunicação menos mediada e mais imediata. A era da "pós-verdade" ainda não atingiu verdadeiramente a Europa, pelo menos não na escala em que atingiu os Estados Unidos, mas já teve algumas vitórias, no Reino Unido, por exemplo, com o Brexit. Vítor Bento, mais uma vez, olha para o futuro e fala cru: "os desenvolvimentos tecnológicos vão ser significativamente economizadores do fator trabalho. É um desafio adicional, é provável que cresçamos com menos emprego, e desse ponto de vista, a conflitualidade social permanecerá latente".

Emigração e Segurança

As vagas de imigração marcaram 2016 e vão continuar a marcar 2017. Sem esperança de estabilização a curto prazo na Síria, na Líbia ou na região do corno de África, e sem melhorias económicas visíveis na África subsariana, não é difícil antever que a pressão sobre as fronteiras sul da União vai manter-se. Maria João Rodrigues considera que há nesta questão "uma fragmentação de prioridades quando olhamos para os vários Estados membros porque os países mais a leste, por exemplo a Hungria ou a Polónia, estão muito centrados na pressão que sentem do lado da entrada de refugiados, por isso foi fechada a chamada rota dos Balcãs", enquanto os países do sul continuam a sentir a economia e o desemprego como prioritários. A secretária de estado Margarida Marques fala da recente onda de atentados, e afirma que "há aqui uma urgência da União Europeia continuar a agir no sentido de ter políticas de segurança mais eficazes e que os cidadãos sintam que essas políticas de segurança existem. E falo não só em segurança em matéria de emprego e de proteção social, como de segurança em matéria de proteção de fronteiras. Penso que há um ambiente de segurança que os cidadãos precisam de sentir". São questões legítimas, diz, mesmo que não as sintamos como essenciais aqui em Portugal. Ainda assim, Maria João Rodrigues afirma que "os cidadãos merecem ser protegidos mas é uma ilusão e um erro pensar que essa proteção deve assentar no regresso às fronteiras nacionais".

2017 poderá ser um ano decisivo na tensão entre uma agenda de estímulo à economia e à coesão, e um passo em frente, que vai exigir recursos do orçamento comunitário, numa política comum de segurança e defesa. Maria João Rodrigues defende que a Europa deve afirmar-se "não apenas como um projeto económico-social, mas como projeto político e geoestratégico", não dependendo da NATO e desenvolvendo capacidades próprias. Ainda assim, a eurodeputada afirma que "a Europa tem que ter uma resposta mais abrangente ao problema, dotando-se de um sistema de fronteira europeia, porque se não vamos ter um regresso às fronteiras nacionais". Numa outra frente do mesmo problema, será necessário "trabalhar com os países de origem, estejam eles no Médio Oriente ou em África, para com eles lançar programas de desenvolvimento e de estabilização, de pacificação, que evitem que as pessoas nesses países sejam forçadas a emigrar". O comissário Carlos Moedas regressa àquele que considera ser o grande desafio para 2017 - o dilema entre uma Europa mais aberta ou mais fechada: "para nos defendermos contra o terrorismo, precisamos de uma Europa mais aberta. Os serviços de informação devem partilhar mais informação, as polícias devem estar coordenadas, devemos ter uma guarda costeira europeia", sem que isso seja visto como um ataque às soberanias dos diferentes estados.

BCE, política monetária e dívida

Mario Draghi é um candidato quase perfeito ao título de personalidade do ano, mas o diabo está no "quase". O programa de compra de dívida pública e privada atravessou todo o ano de 2016 e vai continuar por 2017, ano que pode marcar o seu esgotamento. Este passo em frente de Draghi significou um quase-resgate para os países periféricos da zona euro, reduziu os custos de financiamento para os outros países do euro, e desvalorizou a moeda colocando-a perto da paridade com o dólar americano, algo que não acontecia desde o início do século, o que tem vantagens e desvantagens - positivo nas exportações e negativo nas importações, para EUA e países que negociam em dólares.
O facto é que, à entrada de 2017, e apesar da ação dos programas não convencionais do BCE, a economia europeia mantém-se perto da estagnação. Enquanto é expectável que a Fed, a Reserva Federal dos EUA, vá aumentando o preço do dinheiro ao longo do próximo ano, para ir arrefecendo a inflação, na Europa espera-se que o BCE mantenha as taxas de referência nos 0%. É esta diferença de políticas que explica a desvalorização do euro face ao dólar. O trabalho de Draghi merecia melhor companhia, já que o programa Juncker de investimentos pouco efeito tem produzido. Silva Peneda, conselheiro da Comissão, afirma que o BCE tem sido "o único instrumento a segurar toda a estrutura da União Económica e Monetária, mas é pouco, é curto. É preciso um orçamento para a zona euro".

Eleições, extremismos e populismos

Há três datas, três eleições, a fixar: 15 de março na Holanda, 7 de maio na França e 22 de outubro na Alemanha (aqui esta é a última data possível de uma janela que se abre em meados de agosto).
A Holanda, apesar do tamanho, é o caso mais preocupante, com o PVV - Partido da Liberdade, de Geert Wilders, que até aqui não passava de um pequeno, radical e ruidoso grupo de 12 deputados, a liderar as sondagens desde meados do ano passado. O PVV tem reais possibilidades de apear do governo os conservadores do VVD, e vai radicalizar a política holandesa, já moderadamente eurocética, com maior pressão sobre imigrantes e minorias étnicas, como a comunidade muçulmana. Em França, com os socialistas fora de jogo, o conservador François Fillon parece ter a liderança das sondagens bastante segura, mas Marine Le Pen, da Frente Nacional, mantém-se a uma distância de três a quatro pontos percentuais. Isto não é vantagem que descanse quem quer que seja, e, mesmo que perca as presidenciais francesas, Marine pode chegar a meio da primavera com mais de um terço dos votos. Na Alemanha, olhando para os gráficos das sondagens, há uma curva ascendente, radicalmente ascendente, que corresponde à AfD - Alternativa para a Alemanha, um partido de extrema-direita, e duas curvas descendentes, da CDU e do SPD. Mesmo que não consigam perturbar a reeleição de Angela Merkel, os extremistas da AfD vão conseguir uma voz no Parlamento, um grito contra a imigração e contra mais transferências para a Grécia e outras periferias.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt