A Europa não precisa de um sonho
De cada vez que se junta um grupo de portugueses europeístas sinceros para discutir a Europa (o que aconteceu neste fim de semana em Ílhavo, no WinterCEmp organizado pela representação da Comissão Europeia em Portugal), é certo que se ouvirá falar da necessidade de a Europa ter um sonho, ser um sonho. A ideia é bonita, e apelativa, mas é, muito provavelmente, um erro. Ou uma confusão.
A convicção de que a Europa tem de ser um projeto, uma ideia que se constrói passo a passo para chegar a um objetivo, a um ideal, tem dois perigos: por um lado, facilmente parece que só há um destino possível, e que toda a dúvida ou divergência é antieuropeísta; por outro, implica que a Europa pareça só se justificar se for o tal sonho, a utopia.
A ideia de que a Europa deve ser apresentada como um processo (e não tanto um projeto), um modo de vida ancorado em valores, ideais e ações que os concretizam, que se faz porque é útil, benéfica, necessária e, nalguns casos, até indispensável ou inevitável, parecendo mais modesta e realista, pode ser muito mais apelativa.
Quem acredita na tese do sonho, da utopia, como justificação última da Europa, acha que a alternativa é pouco. Não há de ser por causa do Erasmus, das autoestradas ou do fim do roaming que se conquistará os corações dos europeus para a causa da Europa. Nisso têm razão. Onde erram é em achar que as alternativas são só estas: entre o grande ideal e o polidesportivo construído com fundos europeus.
A ideia de Estados independentes, com histórias diferentes e passados conflituantes, serem capazes de se juntar, ceder soberania, ganhar escala, negociar interesses e procurar denominadores comuns é suficientemente impressionante para ser inspiradora. O processo, no que significa sermos capazes de nos sentarmos e fazermos o que fazemos [negociar entre diferentes, procurando soluções que na maior parte das vezes interessem a todos ou, pelo menos, interessem sempre a muitos (e não sempre apenas aos mesmos)] é, ou deveria ser, suficientemente valioso para dispensar o tal sonho.
Acresce um argumento realista. À medida que a Europa tem mais competências, que pode realizar mais "sonhos", passa a ter de ser mais controversa, mais divisiva. Mas para construir os tais sonhos são necessários instrumentos, políticas, e as políticas não são ideologicamente neutras.
A força da nossa pertença nacional sobrevive a todas as objeções que possamos ter, num determinado momento, às políticas concretas de um governo. Podemos votar a vida toda na oposição que, ainda assim, não rejeitaremos o país a que pertencemos. Com a Europa, suspeito, já não é assim. Se as políticas europeias, em vez de serem bandas largas onde cabem diferentes concretizações nacionais, forem uma grande ideia, um ideal, provavelmente vão ter de deixar alguém, algumas visões, de fora. E se isso acontecer durante muito tempo, quem se sente excluído, mais tarde ou mais cedo, sai.
É esse, ou pode ser esse, o risco dos ultraeuropeístas: um ideal tão absoluto que não pode ser plural.
Consultor em assuntos europeus