A Europa e as migrações
A Comissão Europeia acaba de apresentar as grandes linhas para um pacto sobre as migrações e o asilo. Prometeu, além disso, submeter nos próximos meses um pacote complementar de propostas que trate das diversas facetas da questão. Ou seja, a integração dos migrantes; as operações de repatriamento - quer dizer, a expulsão - dos que virem os seus pedidos de asilo e de residência negados; a revisão das normas que regem o espaço Schengen e o reforço das fronteiras da União; a luta contra o tráfico de pessoas; e um novo tipo de cooperação com os países de origem dos migrantes. É um programa ambicioso. O meu receio é que todo este trabalho dê muita parra e poucos resultados. Esta é uma das matérias que mais dividem os países da UE. Não se conseguem acordos para além do reforço das fronteiras exteriores da União e da intenção, sempre difícil de levar a cabo, de proceder ao retorno musculado dos imigrantes que não forem aceites. Tem sido assim desde a crise migratória de 2015 e temo que assim possa continuar.
Mas vale a pena insistir. A Comissão tem o mérito de nos lembrar que a questão das migrações é um dos principais problemas que temos pela frente. Também nos recorda que se trata de um desafio comum e não apenas dos países que a geografia e a história colocaram mais perto de África, do Médio Oriente, do subcontinente indiano ou da América Latina. Alguns, porém, não querem ver o problema como sendo de todos. Pensam que poderá ser resolvido se se fecharem as fronteiras, de modo a impedir os movimentos de massa. A aposta em fronteiras estanques é uma proposta irrealista. Não tem em conta a demografia, os conflitos, a falta de oportunidades e o desespero que existem às portas da Europa. Se eu fosse um jovem natural do Níger ou da Tunísia, a minha ambição primeira seria a de tentar emigrar para a Europa, a todo o custo. Teria a mesma atitude se viesse do Paquistão ou do Bangladesh. Hoje, é assim. Amanhã, a pressão migratória será incomparavelmente maior.
Perante um cenário deste tipo, compreende-se que a Comissão considere que é melhor estar preparado. Não será fácil, mas há que tentar. As migrações desordenadas e as respostas apenas ao nível nacional acabarão por pôr em causa o acordo de Schengen e a continuação da UE. Tornar-se-ão, acima de tudo, uma bandeira para os populistas, e, por isso, uma ameaça para a democracia em vários países europeus. Trata-se, assim, de uma questão política da maior importância.
Em Portugal, a problemática não é tão visível. Somos mais um país de emigrantes do que de imigrantes. É verdade que em certos círculos europeus já se começa a falar de Portugal como uma porta de entrada e uma antecâmara de passagem para quem vem da Guiné, de Cabo Verde, do Brasil e mesmo da Índia, para mencionar apenas os mais importantes. E já há quem olhe para o mar entre Marrocos e o Algarve e veja aí uma nova rota, que precisa de ser interrompida quanto antes.
Na França, a situação é outra. O presidente Macron sabe quais poderão ser os custos políticos de uma imigração descontrolada. Também está consciente das fraturas que certas comunidades de imigrantes provocam na sociedade francesa. Chama a essas fraturas "separatismo" e considera-as como um dos problemas mais prementes. O separatismo de que fala é mais do que a falta de integração na sociedade gaulesa. É uma atitude deliberada de grupos de pessoas de nacionalidade francesa, mas com raízes estrangeiras, que recusam aceitar os valores laicos, tolerantes e igualitários que definem o etos francês. Esses valores são similares aos prevalecentes no resto da União, mas não são reconhecidos noutras terras, que viveram experiências históricas diferentes das nossas. Esta rejeição deliberada da assimilação é um fenómeno novo e preocupante.
Menciono a França a título de exemplo. Poderia falar de outros países que, no eixo central da Europa, têm sido ao longo dos últimos 60 anos o destino de migrantes vindos de fora da cultura europeia. Em todos esses países, a migração é um tema sensível, latente quando as economias prosperam e aberto quando as dificuldades apertam. Ora, com a economia à beira de uma grande crise, por causa do impacto da covid, não tratar politicamente da questão migratória seria um erro de consequências imprevisíveis para a Europa. Não podemos consentir que se persista nesse erro.
Conselheiro em segurança internacional. Ex-representante especial da ONU