A Europa de Portugal

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Mário Soares quis a Europa para garantir que Portugal ficava do lado das democracias ocidentais. Cavaco utilizou o "dinheiro da Europa" para promover o "progresso". Guterres quis o prémio de fazer parte dos fundadores do euro. Depois disso, Sócrates precisou da Europa para o país ter salvação e Passos teve de lhe obedecer para ter dinheiro. De resto, quase não temos pensado para que nos serve estar na União Europeia.

Macron, Merkel e Ursula von der Leyen têm deixado claro o que querem que a Europa dos próximos tempos seja: um ator económico global. Para isso, contam que os investimentos por causa das alterações climáticas relancem a economia com dinheiros públicos e, sobretudo, privados. E que uma estratégia digital assente em regras europeias globalizáveis e procura pública associada à defesa crie uma indústria digital que possa competir com a americana e a chinesa.

Resumidamente, a visão que Paris, Berlim e o 13.º andar do Berlaymont (onde fica o gabinete e o pequeno apartamento da presidente da Comissão, em Bruxelas) têm para a Europa é: soberania digital, autonomia energética, economia digital hipocarbónica, comércio global com regras europeias e capacidade para defender, pela ameaça do uso da força se necessário for, os interesses da Europa.

E Portugal, que interesses tem?

A geografia política da Europa está a mudar profundamente. A saída do Reino Unido e as mutações na política externa americana enfraqueceram a dimensão atlântica, que era o que nos garantia não sermos completamente periféricos. A ameaça russa faz ressurgir a importância do leste da Europa para a segurança e a estabilidade do continente. Daí termos todos de ter tantas cautelas com as reações ao que se passa na Polónia e na Hungria. E mesmo na Turquia. O investimento chinês, especialmente relevante cá, assusta Bruxelas. Ao mesmo tempo, África é (como se diz há décadas, mas agora com mais sentido) o continente que vai importar. É onde a população vai crescer mais e onde a produção agrícola e as matérias-primas podem fazer a diferença. E onde Portugal tem alguma mais-valia. Ou pode ter.

Uma estratégia europeia para Portugal tem de ter, mas não pode apenas ser África. Há de haver mais. A transição digital e verde tem custos e benefícios. Podemos cumprir acriticamente ou mesmo entusiasticamente as obrigações que sejam decididas ou, pelo menos simultaneamente, definir que interesses temos nesta transformação. Para se perceber a dimensão do que está em causa, basta reconhecer que uma política ambiental que diminua drasticamente o transporte aéreo, por exemplo, vai reduzir turismo. Exatamente o que mais nos fez crescer nos últimos anos. Assim como uma política energética e um roteiro hipocarbónico cegos nos poderiam custar o pouco que resta das indústrias. No digital, o entusiasmo com a Web Summit, provavelmente justificado até pelo turismo, não garante que temos política ou indústria digital.

A Europa já não serve para o que servia. Alguns países sabem o que querem do futuro europeu. Temos de fazer o mesmo. Pensar para que nos serve a Europa. A menos, claro, que fazer parte seja suficiente. Assim com quem vai em excursões pelo prazer da companhia.

Consultor em assuntos europeus.

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