A Europa a olhar para si própria

Por entre os "ventos favoráveis" dos resultados económicos, a União Europeia enfrenta hoje desafios sem precedentes
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A negociar a saída de um dos seus membros, a lidar com a ascensão de populismos e extremismos, a braços com ameaças ao Estado de direito dentro das suas próprias fronteiras, a União Europeia (UE) está hoje num lugar impensável há poucos anos. E a tentar definir para onde vai - e já agora, se todos vão - a partir daqui.

Às portas de 2018, confrontada com estes desafios, a União Europeia "vai andando". Dito assim parece coisa pouca, mas não é - a expressão é de um europeísta convicto, "moderadamente otimista" com o futuro da União. Francisco Seixas da Costa, antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus, olha para o que já lá vai na história da UE e resume as coisas assim: "A Europa vai tentando encontrar a cada momento uma forma de resolução dos problemas. Tem dado provas de que consegue, mesmo à beira do abismo, encontrar soluções". Para o antigo diplomata "quando as questões se colocarem, a UE vai conseguir dar uma resposta". Eventualmente "não levando toda a gente atrás de si" - "Temos de perceber que, neste clube, já nem toda a gente aceita as regras."

Olhando para o futuro próximo, Regina Bastos, social-democrata que preside à comissão parlamentar de Assuntos Europeus, aponta as muitas "situações a que tem de se dar resposta, e uma resposta que não tem precedentes no passado" - da integração dos migrantes ao aprofundamento da União Económica e Monetária, do reforço da cooperação, seja ao nível da segurança e defesa, no combate ao crime organizado, ao terrorismo ou à cibersegurança. Mas, citando os "ventos favoráveis" evocados por Jean-Claude Juncker no último discurso da União, também defende que a UE parte agora de um "quadro muito mais otimista do que há um par de anos", visível no crescimento económico e nos números do emprego.

Expectavelmente, o otimismo não passa os limites do centro político. "Não vêm aí notícias simpáticas" para um projeto de integração que "se oriente para valores de solidariedade e de cooperação", diz Marisa Matias, eurodeputada do Bloco de Esquerda. Exemplo? "Todos os esforços que estão a ser colocados neste momento na União são na defesa e na segurança. A questão é que não vai aumentar o orçamento, não vão aumentar as contribuições dos Estados membros. Isso significa que o dinheiro terá de se ir buscar a outro lado qualquer" e os candidatos na linha da frente são os fundos de coesão e a investigação - "Está nos antípodas da Europa que queremos construir." E falta ainda um pormenor: a UE prepara-se para perder o seu segundo contribuinte líquido.

A saída do Reino Unido e a UE pós-brexit

Não houve uma crise aguda, não houve efeito dominó e é com um certo suspiro de alívio que a saída do Reino Unido da União Europeia entra no próximo ano a caminho da segunda fase das negociações. Não é que o mais difícil esteja feito - longe disso - mas as previsões de um hard brexit parecem ter dado lugar à convicção mais ou menos generalizada de que vem aí um soft brexit. "Quando olhamos para o estado da arte agora e há dois anos acho que se fez um percurso muito significativo. Não quero dizer que não tenha preocupações, mas estou relativamente confiante em que é possível estabelecer um acordo que minimize a quebra da saída do Reino Unido", diz Margarida Marques, ex-secretária dos Assuntos Europeus (deixou o governo em julho) e agora deputada socialista.

Em março deste ano, no mesmo mês em que se assinalaram os 60 anos sobre a assinatura do Tratado de Roma, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, apresentou o Livro Branco sobre o Futuro da Europa, com cinco caminhos para a UE pós-brexit - da solução de continuidade ao aprofundamento apenas do mercado único, da Europa a várias velocidades a uma estrutura concentrada apenas em alguns domínios de intervenção, a acabar no caminho de um maior federalismo.

Já em setembro, o presidente francês, Emmanuel Macron, avançou as suas próprias ideias para o futuro da União - criação de listas transnacionais para as eleições ao Parlamento Europeu, harmonização dos impostos sobre as empresas, uma polícia europeia fronteiriça ou uma força comum de intervenção militar. Angela Merkel mostrou recetividade à discussão, que ganha alento no cenário de uma grande coligação na Alemanha com o SPD de Martin Schulz. Nuno Melo, eurodeputado do CDS, não gostou nem da forma nem da substância do que qualifica como uma "proposta perigosíssima": "Sem mandato, sem discussão, unilateralmente e depois a dois, com a Alemanha, Macron avança com um conjunto de ideias, que são as suas ideias, mas das quais outros líderes europeus, começando pelos socialistas portugueses, vão imediatamente atrás, sem perceber o que está em causa." O eurodeputado do CDS acrescenta que este não é um cenário inédito: "Existe um absoluto desequilíbrio decisório em favor dos grandes países, com culpa imensa de líderes de pequenos e médios países, que à primeira proclamação vão atrás, só para aparecerem na primeira fila da fotografia." Nuno Melo não tem dúvidas de que esta não é uma UE desejada pelos cidadãos - "Os povos europeus não querem trocar soberania por burocracia. O impulso de federalismo é uma fuga para a frente de quem não percebe que os principais problemas que hoje temos resultam precisamente disso."

A reforma do euro

À espera da resolução do impasse na formação do governo na Alemanha as decisões sobre a reforma do euro acabaram adiadas para março e junho do próximo ano. Seixas da Costa não tem dúvidas de que este é o principal desafio que se coloca, no imediato, à Europa. "Vivemos um período positivo, de pós-crise, mas no caso de existir uma nova crise à escala global, o atual mecanismo de sustentação do euro não é suficiente. Deveria ser feito um esforço de maior coerência global dos mecanismos de gestão do euro", sublinha o antigo diplomata, que alerta: "Se há uma crise internacional fora da União que se projeta sobre a União, esta não tem hoje mecanismos para responder a essa crise. Pode ter aí um choque histórico."

A ideia é consensual no centro político: "Enquanto país da linha da frente da adesão ao euro, esta é uma questão muito importante. A criação do Fundo Monetário Europeu, a eventual adoção de uma figura como um ministro das Finanças do euro são ideias ambiciosas, mas que são importantes para finalmente começar a ter, na moeda única, os instrumentos e as competências necessárias para que haja respostas coordenadas e que estejam previstas, para que não haja surpresa como aconteceu em 2008", sublinha Regina Bastos.

E Mário Centeno, presidente eleito do Eurogrupo que vai conduzir este processo, pode fazer a diferença? Margarida Marques acredita que sim. "É óbvio que não vai mudar os tratados, mas não é apenas mais uma visão ultraliberal, tem uma outra forma de olhar para a política." À esquerda, entre os partidos que sustentam o governo, a perspetiva é antagónica. "A política europeia de austeridade não vai mudar por ter um português à frente. Isto é mais o Eurogrupo a entrar em Portugal do que a política portuguesa a entrar no Eurogrupo", defende Marisa Matias.

A vez da Europa social?

Em novembro último a União saiu da Cimeira Social em Gotemburgo com a proclamação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, que define 20 princípios para apoiar o bom funcionamento e a equidade dos mercados de trabalho e dos sistemas de proteção social, e que tem sido saudado como um instrumento capaz de dar corpo - assim seja implementado - a uma Europa social . "É um embuste", contrapôs Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP, na intervenção que fez na passada semana durante o ciclo de conferências sobre o futuro da Europa, organizado pelo DN para assinalar o seu 153.º aniversário. João Ferreira, eurodeputado comunista, explicita: "Os pilares da união económica e monetária têm levado - está aí a realidade a demonstrá-lo - à desigualdade, à divergência económica entre os países. Agora quer-se dar a este edifício, que é estruturalmente antissocial, uma cobertura, um verniz social. Não vem alterar nada." Mais: "Estes patamares mínimos são tão mínimos que correm risco de ter o efeito perverso de nivelar por baixo as condições de vida e de trabalho na Europa. Se olharmos para o conteúdo deste pilar está a milhas de distância do que prevê a Constituição da República Portuguesa".

Outro ponto de total discórdia é aquilo que João Ferreira qualifica como uma "deriva militarista e securitária" - leia-se a Cooperação Estruturada Permanente, a que Portugal aderiu há poucas semanas, e que lança os mecanismos de uma cooperação reforçada na área da Defesa - já previstos no Tratado de Lisboa, mas que só agora avançam, na perspetiva do brexit e do posicionamento da administração Trump. Para Regina Bastos a UE enfrenta tantos desafios nesta área que não pode senão articular-se. "A defesa e a segurança, que para nós portugueses são uma questão mais ou menos remota, não podem ser vistas pela UE como uma questão longínqua. Esta é, neste momento, uma das grandes pedras-de-toque da União." Em Portugal a CEP provocou uma pouco habitual divisão entre socialistas e sociais-democratas em matéria europeia, mas de um lado e do outro a divergência é explicada mais em função da luta política interna do que de uma divergência real. Tradicionalmente uma área de consensos entre os dois principais partidos portugueses (como entre as respetivas famílias europeias do PSE e PPE), não será por aqui que PS e PSD se dividirão quanto à Europa.

Uma "deriva antidemocrática"

Na passada semana as instituições europeias estrearam-se numa decisão inédita - mais uma - com a Comissão Europeia a recomendar a aplicação do artigo 7 do Tratado Europeu contra a Polónia, classificando a reforma judicial em curso no país como "uma ameaça aos valores fundamentais de um Estado de direito democrático". Um "óbvio abuso de poder", chamou-lhe o comissário Frans Timmermans, vice-presidente da Comissão, sublinhando que há quase dois anos que a UE vem tentando, sem sucesso, que a Polónia não avance com a legislação que dá ao governo a faculdade de nomear e demitir os juízes quer do Supremo Tribunal quer dos tribunais inferiores.

Nas vésperas de ser conhecida a posição da Comissão, Margarida Marques, apontava ao DN precisamente a falta de uma reação mais enérgica por parte da União Europeia perante a "inaceitável" situação na Polónia. "Os cidadãos europeus não entendem porque é que as instituições europeias têm capacidade para sancionar um país porque não respeita, por exemplo, os critérios orçamentais, e não têm capacidade para sancionar um país que não respeita o Estado de direito", apontava a agora deputada socialista. A reação aí está, mas está longe de encerrar o problema da capacidade de resposta da UE no cenário de ameaça a um dos seus princípios basilares. Tido como a "bomba atómica" das sanções aplicáveis aos Estados membros, o acionar do artigo 7 pode redundar, em última instância, na retirada do direito de voto à Polónia. Mas a decisão - que cabe aos governos representados no Conselho Europeu - exige unanimidade. Sem surpresa, a Hungria já fez saber que não apoiará a penalização, e República Checa e Eslováquia também mostraram muitas reticências. E a seguir? "A União Europeia fica sem poderes, sem soluções" de peso, diz Seixas da Costa.

E a Polónia está longe de ser a única dor de cabeça da UE. Há a Hungria, a República Checa. E agora há a Áustria, onde a extrema-direita não só voltou ao poder, como o fez garantindo a tutela de três ministérios com a importância dos Negócios Estrangeiros (embora a política europeia fique na alçada do líder do governo, do partido conservador ÖVP), do Interior e da Defesa. Em 2000, quando o FPÖ integrou pela primeira vez um governo de coligação na Áustria, a UE em choque reagiu decretando sanções ao executivo de Viena. Mas, desde então, a Europa mudou tanto que este é um cenário hoje impensável. "A sensação que tenho é que há sócios que estão no clube que já não se sentem de acordo com as regras", resume Francisco Seixas da Costa.

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