A Europa à beira de um desastre
Se há um ano nos dissessem que nesta altura dezenas de milhões de europeus estariam vacinados contra a covid-19, ninguém acreditaria. Só por milagre isso poderia acontecer. Se há um ano nos dissessem que a Comissão Europeia iria centralizar a compra dessas vacinas e distribuí-las equitativamente, poucos acreditariam e muitos desconfiariam dos habituais egoísmos nacionais. Mas agora há uma larga maioria a entender que o processo de vacinação na União Europeia (UE) é um falhanço. É difícil ser mais injusto, até porque essa ideia, convertida em pressão, pode empurrar a UE para o verdadeiro desastre.
Só podemos entender que as coisas estão a correr mal quando comparamos com Israel, os Estados Unidos e, sobretudo, com o Reino Unido, país com o qual estamos em confronto direto por causa do consórcio Oxford/AstraZeneca. Acontece que na UE seria impossível pagar pelas vacinas o que Israel pagou, não tanto por ter pago mais do dobro do preço normal, mas, sobretudo, porque seria impossível ceder os dados de saúde dos europeus a uma farmacêutica. Nos Estados Unidos vigora o mais forte protecionismo nesta matéria. Sobra a retaliação que a UE ameaça fazer, impedindo a AstraZeneca (AZ) de exportar vacinas produzidas em território europeu para países que também produzam essa vacina mas não permitam a Bruxelas importá-las. Ou seja, proibir a exportação da vacina da AZ para o Reino Unido.
Bruxelas poderia optar por resolver o conflito nos tribunais, mas a resolução dessa batalha nunca aconteceria a tempo de recuperar o tempo perdido. Pressionada pela opinião pública europeia, a Comissão ameaça com uma "bomba atómica" que só poderá ter resposta igual do outro lado. No fim, pagarão os cidadãos de ambos os lados do canal, de ambos os lados do mundo. Como a pandemia nunca será ultrapassada, mesmo para os países que levam a dianteira na vacinação, enquanto não se aumentar substancialmente a produção e não se fizer uma distribuição equitativa pelos quatro cantos do mundo, vão crescendo os nacionalismos. China e Índia, os dois países mais populosos do mundo e com maior capacidade de produção de vacinas, já avisaram de que vão começar a equilibrar a procura interna com a procura externa, o que quer dizer que vão começar a reter mais vacinas para os seus cidadãos. O Reino Unido já se queixou da Índia por atraso no envio de vacinas da AZ para a ilha, enquanto a Índia se queixou dos Estados Unidos por não permitirem a exportação de matérias-primas para a produção dessas mesmas vacinas.
E, sim, é verdade, a UE exportou para o outro lado do canal da Mancha mais de nove milhões de vacinas da AZ e não recebeu nenhuma em troca, mas, se o Conselho Europeu desta semana se decidir pela proibição das exportações, só pode esperar que o resto do mundo, a começar pelo Reino Unido, pague na mesma moeda. Nanopartículas e biorreatores são palavras que dizem muito pouco a qualquer cidadão europeu, a não ser que lhes digam que são ingredientes que Reino Unido e Estados Unidos enviam para a Europa para esta poder produzir vacinas. É só um exemplo da interpendência na produção de vacinas, que é quase total. Talvez se conseguissem salvar os norte-americanos, que, nem de propósito, são quem pior se comporta nesta matéria: "A proibição de exportação de vacinas fez com que 30 milhões de doses da AZ se acumulassem num armazém do Ohio e mais uns milhões noutro armazém de Baltimore", noticiava o New York Times. À Europa cabe liderar pelo exemplo, não seguir os maus exemplos.
Jornalista