A eterna continuação de uma bela amizade

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Humphrey Bogart, o eterno Rick, de Casablanca (1942), morreu com 57 anos, há precisamente meio século, no dia 14 de Janeiro de 1957. Para Hollywood, viria a ser um ano marcado pelo impacto simbólico de dois filmes: A Ponte do Rio Kwai, de David Lean, e Doze Homens em Fúria, de Sidney Lumet. O primeiro inaugurava a superprodução, género que, através da sua grandiosidade, procurava reagir à crescente rivalidade da televisão; o segundo, paradoxalmente, era uma espécie de sucedâneo cinematográfico dos "teledramáticos" da época, consagrando também (justamente através de Lumet) uma geração cuja formação era já indissociável do pequeno ecrã. Dito de outro modo: Bogart desapareceu quando estava também a desaparecer o mundo que fizera dele uma estrela e cuja mitologia o seu estilo e a sua aura ajudaram a consolidar.

A lenda

No começo dos anos 30, ele era apenas um entre muitos jovens actores que tentavam encontrar um lugar no interior de uma indústria a viver as convulsões decorrentes da introdução do som. Em 1957, depois da estreia daquele que seria o seu derradeiro filme (A Queda de Um Corpo, de Mark Robson), Bogart encarnava uma condição lendária que, por assim dizer, resultava da contaminação dos próprios heróis ou anti-heróis que tinha representado no ecrã: o detective Sam Spade em Relíquia Macabra (John Huston, 1941), Philip Marlowe em À Beira do Abismo (Howard Hawks, 1946), ou ainda Harry Dawes, o desencantado cineasta de A Condessa Descalça (Joseph L. Mankiewicz, 1954).

E, no entanto, apesar da sua íntima ligação ao studio system das décadas de 30, 40 e 50, Bogart é uma figura que permanece como uma imagem sempre actualizada e, por assim dizer, actualizável. Porquê? Talvez porque há nele um sentido de pose em que o natural se confunde com o teatral, o efémero com a promessa do eterno abstracto. Até mesmo o seu casamento com a actriz Lauren Bacall (em 1945, ainda antes de ela completar 21 anos) parece fazer parte de um imaginário em que vida privada e ficções do ecrã acabam por se envolver de forma singularmente harmoniosa.

Hoje em dia, os espectadores que apenas puderam conhecer Bogart através do DVD vê-lo-ão, provavelmente, como a emanação estilizada de um sofisticado sistema (de produção e mitologias). Assim é, sem dúvida. Mas vale a pena lembrar que Bogart e os seus pares trabalharam inseridos numa indústria hiperactiva, anterior a todos os abalos provocados pela concorrência da televisão: desde Up the River (1930), de John Ford, até ao já citado A Queda de Um Corpo, isto, num período de 27 anos, Bogart surgiu em mais de sete dezenas de longas-metragens.

Daí a estranha familiaridade com que sempre o recebemos. Talvez que, em determinados momentos, Clark Gable, James Cagney ou Gary Cooper tenham tido uma presença mais exuberante no mercado dos filmes. Mas Bogart manteve-se sempre próximo de nós, sempre envolvido pelo terno mistério dos heróis desencantados. Quando, no final de Casablanca, ele se dirige a Claude Rains, proclamando o célebre "creio que isto é o princípio de uma bela amizade", não podemos deixar de pensar que também somos destinatários do seu voto. E fiéis ao compromisso que nele se afirma.

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