A estável Inglaterra é favorita num Seis Nações de transição

Vice-campeã no Mundial do Japão, a seleção inglesa que Eddie Jones quer tornar a "melhor equipa que o râguebi mundial já alguma vez viu" é a grande candidata ao triunfo na edição 2020 do centenário torneio das Seis Nações que se inicia neste sábado. Em período de reconstrução e início de ciclo, quatro seleções mudaram de treinador.
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Exatamente três meses depois da final da Taça do Mundo do Japão, período se calhar curto para as equipas procederem à análise do que correu bem ou muito mal, mas suficiente para o adeus internacional de muitos nomes que escreveram a história da modalidade nos últimos anos, está de regresso o torneio das Seis Nações. E como é normal nas edições que sucedem a Mundiais, este é um ano de transição, com as seleções a iniciarem um ciclo que se encerrará no Mundial de 2023 em França. Para lá das dezenas de novidades entre os convocados para as primeiras jornadas, quatro equipas mudaram de selecionador e haverá também quatro novos capitães.

Esta será a edição n.º 126 da mais antiga competição do mundo entre seleções de qualquer modalidade criada em 1883 com as quatro seleções britânicas, e que em 1910 veria a França juntar-se para, em 2000 e com a entrada da Itália, ganhar a nova designação que já vai no seu 21.º ano.

Finalista derrotada diante da África do Sul no Japão, depois de ter cometido a proeza de afastar os bicampeões mundiais All Blacks numa fantástica meia-final, a Inglaterra de Eddie Jones é o conjunto com menos novidades e parte, obviamente, na linha da frente das casas de apostas. Tendo estagiado nesta semana no Algarve - mais uma vez Vilamoura serviu como preparação final do torneio para os ingleses que dali voaram diretamente para Paris -, nas palavras do treinador australiano (5.ª época ao leme da equipa da rosa) a primeira questão analisada versou "apontar aquilo que a equipa fez bem no Mundial" e que "erros não podem voltar a ser cometidos". E a análise entronca no novo mantra de Jones para esta temporada: "Queremos ser a melhor equipa que o râguebi já alguma vez viu." Como se prova, modéstia nunca foi uma das qualidades do reputado técnico australiano...

Os ingleses começam a prova logo com duas deslocações tradicionalmente complicadas (Paris e Edimburgo) e se saírem vencedores dificilmente deixarão de recuperar o título perdido em 2018 e 2019 depois de terem vencido nos dois anos anteriores.

Outra questão importante, ao estilo de elefante em loja de porcelana, é saber qual a influência da situação que afeta a atual equipa campeã europeia e bicampeã inglesa, o Saracens, na cabeça de jogadores como Jamie George, Maro Itoje, George Kruis, Mako Vunipola (o irmão Billy partiu um braço e estará ausente), o capitão Owen Farrell ou o novo recruta Elliot Daly.

Depois de multados em seis milhões de euros e obrigados a iniciar o campeonato com menos 35 pontos - nesta semana foram acrescentados mais 70 pontos de penalização! - por quebra continuada das regras de teto salarial na Premiership, os Saracens souberam na semana passada que independentemente da classificação obtida, o castigo irá agora também incluir a automática despromoção da equipa campeã inglesa em três das últimas quatro épocas.

Eddie Jones promete para esta época adquirir mais velocidade e criar um novo modelo de ataque. "Desenvolvemos um estilo de râguebi inglês nos últimos quatro anos e agora teremos de o renovar." Não será fácil, mas com o australiano nunca nada é fácil.

Difícil sucessão após 12 anos de Gatland

Mas a Inglaterra não será a única equipa que planeia mudar o estilo de jogo. Também o País de Gales, vencedor no ano passado, vai introduzir mudanças com a chegada do novo selecionador, o neozelandês Wayne Pivac, que sucede ao compatriota Warren Gatland, que nas últimas 12 épocas deu aos galeses três títulos (2008, 2012 e 2019, todos com Grand Slam). É o quarto responsável sucessivo neozelandês nos últimos 21 anos a treinar Gales.

O técnico de 57 anos pretende revitalizar o jogo galês tal como o fez ao comando dos Scarlets, que conduziu à conquista da Pro12 em 2017. Pragmático, reafirma a sua filosofia de "se está bem não tentes mexer", pelo que mesmo tendo perdido o responsável pela defesa Shaun Edwards para a equipa técnica francesa, não irá alterar muita coisa no capítulo defensivo dos semifinalistas no Japão. Agora no ataque, em que contará como adjunto com o antigo médio de abertura internacional Stephen Jones, as mudanças irão ser significativas, adotando um estilo mais expansivo e espetacular. Mas avisa, "irá demorar ainda algum tempo a mudar a mentalidade, tal como aconteceu nos Scarlets".

Gales mantém o veterano capitão-fantástico Alun Wyn Jones (143 internacionalizações a cinco do recordista Richie McCaw, bicampeão mundial pelos All Blacks em 2011 e 2015) mas estará sem o lesionado e influente centro Jonathan Davies, que poderá levar George North a ser deslocado da ponta. Numa equipa que espera ver regressar, quase dois anos depois e após demorada lesão, o soberbo n.º 8 Tobi Faletau, o sorteio não foi nada favorável neste ano, com espinhosas viagens a Londres e Dublin. Pelo que na estreia de Pivac, renovar o título será uma tarefa digna de Hércules.

Irlanda em reconstrução sem velhos guerreiros

Depois de um 2019 em que passou da 2.ª posição mundial para a 5.ª, outra seleção que diz querer remodelar o seu modelo de ataque é a Irlanda em que Andy Farrell surge no comando técnico depois de muitos anos como n.º 2 de Stuart Lancaster (Inglaterra), Warren Gatland (British Lions) e Joe Schmidt (Irlanda).

Finalmente com possibilidades de fazer vingar as suas próprias ideias, o antigo internacional inglês de rugby league (estreou-se aos 18 anos e capitaneou a seleção aos 21) e union, trouxe para o auxiliar nessa tarefa Mike Catt - o centro campeão mundial em 2003 deixou a equipa técnica italiana - que, juntamente com o novo capitão Jonathan Sexton, tem vindo a trabalhar diversas mudanças no sentido de tornar o quinze irlandês mais agressivo e imaginativo. E para isso conta com um "três de trás" que poucos igualarão, formado pelos perigosos Jacob Stockdale, Andrew Conway e Jordan Larmour.

A preparar a sua estreia na prova, mais uma vez na Quinta do Lago, Farrell sabe que este será um ano de reconstrução a percorrer sem alguns dos velhos guerreiros que abandonaram (nomeadamente o carismático capitão Rory Best) ou com algumas estrelas já em declínio das suas capacidades: "Estou muito entusiasmado em conduzir a equipa na direção que pretendo. E depois de 28 anos como profissional de râguebi, estava à espera que este momento chegasse", diz.

Baseada nas suas quatro equipas provinciais todas em grande forma e maioritariamente composta por atletas do fantástico Leinster (16 vitórias nos 16 jogos desta época!), a Irlanda terá três jogos em Dublin, mas as deslocações a Twickenham e Paris serão um duro teste para o técnico que quer construir uma equipa "que os adeptos adorem ver jogar".

Disciplina trama playmaker escocês Finn Russell

Apesar do fraco Mundial realizado no Japão onde se quedou pela fase de grupos, Gregor Townsend mantém-se ao comando da seleção escocesa. E confia que o novo capitão, o explosivo Stuart Hogg (Jogador do Torneio em 2016 e 2017), galvanize o seu conjunto de jogadores. "O papel do capitão não é só falar com o árbitro ou decidir como jogamos as faltas. Ele vai trazer experiência, entusiasmo e dinâmica à equipa, transmitindo confiança para cada um tomar, em cada momento, as decisões corretas."

Para lá do adeus de nomes como Greig Laidlaw, Tommy Seymour ou John Barclay, a Escócia vai estar, pelo menos nas duas primeiras jornadas, sem o seu médio de abertura n.º 1 e playmaker, Finn Russell, em dia sim um dos melhores dez do mundo, afastado por quebra de conduta disciplinar. Ao que parece, o jogador, que alinha nos milionários franceses do Racing 92 de Paris, terá abusado do álcool numa noitada falhando um treino...

"Não vamos mudar a maneira como temos jogado, praticando um râguebi ambicioso e em velocidade", afirma Hogg, que acredita que o plano de jogo a implementar lhes permitirá "fazer muitos ensaios".

Depois de um bom 3.º lugar em 2018, no ano passado a Escócia quedou-se pela 5.ª posição numa prova que nunca conquistou, já que o seu último título data de 1999, precisamente na última edição do Cinco Nações.

Só com dois jogos em casa - um deles na Calcutta Cup diante da arquirrival Inglaterra - e com uma profundidade de escolhas diminuta em relação aos adversários, ainda não será neste ano que as gaitas-de-foles escocesas irão festejar êxitos na bola oval.

Galthié promove enésima revolução francesa

A França agora dirigida pelo carismático e egocêntrico Fabien Galthié, que rendeu o demasiado suave e indeciso Jacques Brunel, é uma seleção com grande margem para melhoria, pois os últimos anos têm sido demasiado maus para os padrões de um quinze que já venceu a prova 17 vezes, mas não triunfa desde 2010 - o mais longo período sem conquistas desde a sua primeira vitória em 1954.

Nos últimos oito anos, os gauleses, sempre em sucessivas remodelações que pouco têm resultado, só terminaram na primeira metade da tabela numa ocasião (2017, quando foram terceiros), pelo que a pressão dos media franceses vai certamente fazer-se sentir sobre Galthié, que sem hesitar nem olhar a dinheiro se rodeou de uma equipa técnica de luxo, à qual foi acrescentado o inglês Shaun Edwards, um dos melhores técnicos de defesa do mundo e que esteve ao serviço de Gales nos último 12 anos.

Com os olhos postos no próximo Mundial, que terá lugar no hexágono em 2023, o antigo capitão dos Les Bleus revolucionou a lista de convocados e chamou 19 estreantes entre os 42 do lote inicial, com diversos jovens campeões do mundo sub-20 em 2018 e 2019, designando surpreendentemente como novo capitão o gigante flanqueador do Toulon (1,99m/108 kg) Charles Ollivon, 26 anos, que soma apenas 11 internacionalizações e nunca foi titular no Torneio!

"Temos uma equipa inexperiente mas isso não nos vais impedir de ser ambiciosos", afirma Galthié, ao mesmo tempo que assume a responsabilidade de "unir todo o râguebi francês à volta do seu principal quinze e devolver a França ao topo".

O jogo inicial em casa com a vice-campeã mundial Inglaterra irá dar o tom para o restante torneio numa equipa onde a charneira será formada pelo jovem par de médios Antoine Dupont e Romain Ntamack, e que contará, nas linhas atrasadas, com dois jogadores a fazerem uma época fabulosa, mesmo a nível europeu: Virimi Vakatawa e Teddy Thomas.

Itália órfã de Parisse

Depois de ter, mais uma vez, ficado fora dos quartos-de-final do Mundial - nunca os transalpinos atingiram essa fase nas suas nove presenças -, o irlandês Conor O'Shea demitiu-se em novembro do cargo de selecionador, obrigando a federação italiana a uma urgente busca que redundou no antigo internacional sul-africano Franco Smith, bom conhecedor da realidade italiana já que que terminou a carreira como jogador no Treviso, equipa que treinou entre 2007 e 2013.

O ex-springbok dirigia agora os sul-africanos dos Cheetahs na Guiness Pro 14 e reconhece que a Itália vai ter de virar uma nova página no ano que verá Sergio Parisse, de 36 anos, e recordista com 69 jogos no torneio, dizer finalmente adeus, o que acontecerá na derradeira jornada na receção em Roma à Inglaterra.

Uma das primeiras alterações promovidas por Smith foi precisamente escolher uma estrutura de jogadores mais experientes para preencherem a falta do veterano capitão - formada por sete atletas, o que mostra bem a influência e importância de Parisse - numa equipa irregular, sem chama e que não vence uma partida do Seis Nações desde 2015, quando foi a Edimburgo bater a Escócia (22-19) na 3.ª jornada desse ano.

Esta será a oportunidade para jovens como o asa Jake Polledri ou o defesa Matteo Minozzi (ausente por lesão em 2019) se afirmarem em definitivo numa equipa que depende muito da inspiração do médio de abertura Tommaso Allan.

Com apenas dois jogos em Roma, em que não triunfa desde 2013 para o torneio, a seleção italiana é mais uma vez a grande candidata à colher de pau do último classificado para juntar às 14 que já possui nas suas vitrinas.

Assim, em cinco dos próximos sete fins de semana e como se repete todos os anos desde 1883 (com a natural exceção do período das duas guerras mundiais), voltaremos a ver cinco magníficos estádios preenchidos por completo com adeptos, sem grupos organizados nem apetrechos pirotécnicos, mas conhecedores e civilizados, a vibrarem com os seus ídolos. Tudo regado por abundante cerveja no mais completo desportivismo e como fair play as usual.

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