A esquerda entendeu o princípio do mal menor

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Perante o dilema da esquerda brasileira nestes dias de mudança de década, São Tomás de Aquino, o teólogo que algures no século XIV desenvolveu o "princípio do duplo efeito", entretanto também conhecido como "teoria do mal menor", tornou-se mais atual do que nunca.

Nas últimas eleições municipais na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, a esquerda chegou à segunda volta com duas alternativas.

De um lado, Marcelo Crivella, cantor gospel, bispo da Igreja Universal do Reino do Deus, sobrinho do fundador da seita, Edir Macedo, e prefeito em funções desde 2017.

Ultraconservador, falso moralista e intolerante, foi apelidado de pior autarca da história da ex-capital federal brasileira. E termina o mandato preso, acusado de roubar os cofres já tão depauperados da cidade num esquema corrupto e mesquinho. Com este breve currículo descrito nas frases anteriores, não espanta que tenha ganho a admiração, o amém e o apoio político de Jair Bolsonaro.

Do outro lado, Eduardo Paes, do DEM, um partido que é neto do ARENA, a força que sustentou a ditadura militar, e abrigo de "coronéis nordestinos" que se confundem com personagens dos livros do escritor Jorge Amado ou do dramaturgo Dias Gomes, como José Sarney ou Antônio Carlos Magalhães.

O DEM foi oposição veemente aos governos de esquerda de Lula da Silva e de Dilma Rousseff e votou, claro, em peso pela deposição desta última, apoiando depois o governo tampão do impopular e bafiento Michel Temer.

Não era fácil mas a esquerda engoliu um sapo com tamanho de elefante, colocou uma venda impermeável nos olhos em frente à urna e foi perentória: entre o representante de tudo aquilo que sempre combateu em política, Paes, e o símbolo das trevas, Crivella, votou em peso no primeiro.

O pesadelo não acabou em 2020: em fevereiro de 2021, a Câmara dos Deputados vai eleger o seu novo presidente. De um lado, Arthur Lira, do PP, e, do outro, um candidato ainda sem rosto (provavelmente Baleia Rossi, outro cacique local) mas seguramente apoiado por Rodrigo Maia, o presidente cessante e talvez, hoje em dia, a principal figura do tal DEM.

Do DEM já foi dito tudo acima, do PP falta dizer que também é neto do ARENA, que foi o partido com mais gente atingida pela Operação Lava-Jato (não, não foi o PT, longe disso) e que é visto como um dos pilares do chamado "Centrão", aquele bloco de partidos sem caráter que apoia o governo do momento, seja ele qual for, desde que receba em troca nacos do poder e do orçamento de estado.

Bolsonaro, cujo discurso de campanha para enganar os palermas dos seus eleitores era acabar com esse "toma lá dá cá" entre governo e "Centrão", aliou-se à primeira oportunidade, claro, ao dito "Centrão", a quem já deu, humildemente, centenas de cargos e milhões de reais públicos, de forma a precaver-se em caso de votação de um impeachment na Câmara dos Deputados.

O "Centrão" sempre foi a personificação de tudo o que há de mais repulsivo em política - agora, some-se a isso uma aliança com a ignorância em estado bruto que o atual presidente representa.

Posto isto, como não tem votos para apresentar uma terceira via competitiva, a esquerda, que já almoçou um sapo em forma de elefante no Rio, prepara-se para jantar um sapo em forma de elefante em Brasília e votar no candidato de Maia, no candidato do DEM, no candidato pro-impeachment de Dilma.

Mas, pelo menos, a esquerda entendeu, em 2020 e 2021, o que é "mal menor" em política.

Nas eleições de 2018, a maior parte da direita achou que o "mal menor" era o admirador de torturadores que acabou eleito e não Fernando Haddad. Deu no genocídio pandémico que deu.

Por falar em "mal menor", na política de um país que inventou os slogans "vote Tiririca, pior do que está não fica" e "ele rouba mas faz", terminemos com outro dos lemas de campanha mais famosos do país - o de Cassiano Piccoli, candidato a vereador pelo PSDB em Matinhos, no estado de Santa Catarina, nas municipais de 2012.

Por apresentar deficiência no crescimento e ser conhecido na cidade simplesmente como "Anão", os cartazes da sua campanha incluíam o seu rosto e a frase "vote em Anão - dos males o menor".

Correspondente em São Paulo

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