A esquerda ainda goza de boa saúde
Por ocasião do Ano Novo, muitos analistas de diferentes quadrantes apressaram-se a constatar o que parece ser uma realidade aparente: a crise da esquerda a nível global. Em França, o Partido Socialista está nos mínimos históricos de popularidade e é muito provável que o direitista Fillon fique com a presidência da República. Em Itália, a demissão de Renzi parece ter sido a certidão de óbito do progressismo, é muito provável que Merkel seja reeleita na Alemanha, no Reino Unido o Labour perde influência a grande escala e nos Estados Unidos elegeram Trump como presidente. Estes analistas superficiais perguntam-se como é possível que numa altura de elevada insegurança económica e de crescente desigualdade os europeus prefiram os partidos conservadores. Mas a resposta é muito simples. Porque os partidos conservadores têm uma trajetória provada de melhor gestão dos tempos críticos. Em segundo lugar, porque nem é certo que esteja a aumentar dramaticamente a desigualdade nem é verdade que as pessoas se preocupam muito. O que os cidadãos querem, se for possível, é trabalhar, e na hora de criar emprego a direita fá-lo muito melhor do que a esquerda, que é tradicionalmente muito competente em destruí-lo.
Mas isto não quer dizer que a esquerda esteja em retirada, ou que os seus ideais fracassados tenham ido à vida. O que escrevem estes analistas não deixa de ser um exercício mais de cinismo, de vitimização ou, no pior dos casos, uma mostra adicional da sua incapacidade para entender os factos. O que está a acontecer no mundo é que a direita se apropriou das ideias sociais-democratas, assumiu-as como próprias, interiorizou-as de forma camaleónica e, como demonstra uma eficácia muito maior em pô-las em prática, alcançou um poder de sedução muito superior entre os eleitores.
Não é certo que o liberalismo, se o consideramos - e esta é a minha opinião - como o contrário do socialismo, esteja a ganhar a batalha das ideias. O que estamos a assistir e à consolidação de um socialismo brando às mãos de políticos conservadores. Continuamos a ter um nível de gasto público muito elevado, uns impostos escandalosamente altos, umas restrições enormes ao livre desenvolvimento da atividade económica, assim como uma inclinação crescente para impor mais barreiras ao livre comércio. Isto é o contrário do que predica o liberalismo. Isto é socialismo puro, apesar de os seus promotores lhe chamarem de outra maneira ou encarnar opções políticas conservadoras ou de direita.
Espanha é um bom exemplo do que digo. A cena política e institucional do meu país aparece definida pela presença de um governo minoritário cuja ação se destina a fortalecer o consenso social-democrata existente entre as principais forças com representação parlamentar. Nele participam todos os partidos, com exceção da esquerda radical, cuja estratégia é combater o sistema. Está-se a configurar ou a tentar configurar uma Grande Coligação de facto entre o centro-direita e o centro-esquerda, o que condicionará a agenda governamental no que resta da legislatura. Há um denominador comum entre o PSOE e o PP, definido pela consolidação de um discurso e uma práxis contrária à adoção de medidas que suponham uma redução do peso do Estado na economia e na sociedade espanhola.
A ironia ou o paradoxo desta legislatura não resulta no facto de o PP não ter capacidade de levar a bom porto o seu programa eleitoral, mas de ser obrigado a aplicar o dos seus adversários se deseja continuar no poder. Num governo cuja gestão na época de maioria absoluta se limitou a realizar os ajustes mínimos e imprescindíveis para evitar o colapso da economia, a tentação de acentuar os seus instintos socialmente conservadores num contexto de minoria pode ser (e é!) muito elevada. Isso reforça a posição da ala menos liberal do centro-direita e oferece um extraordinário álibi para fazer aquilo que realmente deseja: ser a oficina de reparações da social-democracia.
No plano económico, a legislatura vai estar dominada pela necessidade de reduzir o binómio défice público-dívida pública para cumprir os compromissos acordados com Bruxelas. Mas tendo em conta as iniciativas adotadas até ao momento, a estratégia de corte da dívida das administrações passa por subidas dos impostos. Sem reformar e cortar nos gastos públicos. Esta mistura de programação fiscal supõe uma continuação da aplicada no período 2012--2016, cujo resultado foi o incumprimento em todos esses anos dos objetivos do défice projetado pelo governo. Em 2017, a inércia do atual ciclo expansivo, juntamente com o aumento da inflação, eleva as possibilidades de reduzir o desequilíbrio financeiro do setor público, mas depois do próximo exercício abre-se um horizonte de grande incerteza.
Com a atual composição do Parlamento espanhol é improvável que se avance nas reformas estruturais pendentes. E num cenário de debilidade política, qualquer agenda reformista na direção de liberalizar a economia enfrentará uma firme oposição dos partidos que, por razões ideológicas ou eleitorais, são contrários, e dos grupos de interesse cuja capacidade de manobra aumenta de forma exponencial à volta de um gabinete frágil. Por acréscimo, existe o risco de que os partidos da oposição possam aprovar iniciativas no Congresso que revoguem ou modifiquem de forma substancial algumas das reformas introduzidas no anterior mandato do PP.
Em suma, a economia manterá um vigoroso ritmo de crescimento em 2017, superior ao da média da UE, mas este tenderá a desacelerar-se ao longo do próximo ano. A configuração do Parlamento impedirá a adoção das políticas necessárias para construir sobre as bases sólidas da recuperação, o que terminará por tirar dinamismo à economia e a tornará muito vulnerável a qualquer choque adverso de natureza interna ou externa.
E, por outro lado, nos grandes assuntos de Estado suscetíveis de consenso - educação, saúde, pensões, etc. - a única probabilidade de acordo é introduzir soluções transacionais que não resolvem os problemas de fundo, aceitar o statu quo vigente ou acentuar a sua deriva estatística. O equilíbrio de forças entre o PP, o PSOE e o partido de esquerdas Ciudadanos torna impossível qualquer iniciativa diferente para abordar as deficiências estruturais dos chamados programas sociais. No melhor dos casos, só resta esperar que os gastos públicos destinados a eles não aumentem de maneira significativa, extremamente duvidoso face aos pactos que o governo está a fechar com os socialistas e o Ciudadanos.
Rajoy perdeu uma grande oportunidade entre 2012 e 2016 para modernizar Espanha. Agora, essa tarefa apresenta restrições insuperáveis num país no qual o eixo da agenda se deslocou até uma ideologia contrária aos fundamentos de um partido de centro-direita liberal. Há governo, a governabilidade, mesmo de modo precário, pode estar garantida e é muito provável que o executivo de Rajoy finalize o seu mandato. Mas a atual conjuntura conduz a um travar das reformas económicas e institucionais que Espanha precisa para dar um salto para a frente. De momento, a realidade não está má à superfície, parece imperar um cómodo aurea mediocritas horaciano, mas o substrato é de uma enorme fragilidade. É o velho lamento da Espanha que é face à que podia ser. E que não o é porque, apesar do que dizem os analistas queixosos e cínicos, a esquerda ainda goza de muito boa saúde. Em Espanha, certamente, muito mais em Portugal, mas também em quase todos os corações conservadores e equivocados do planeta.