A espiral de violência que conduziu ao Hamas 

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Os ataques ousados e cruéis do Hamas em Israel suscitaram, com razão, a condenação do mundo inteiro. Se isto for uma guerra, como ambos os lados concordam que é, então o ataque deliberado contra civis por parte do Hamas conta como um grave crime de guerra.

No entanto, a brutalidade demonstrada pelo Hamas não surgiu do nada. A lição que se tira do que está atualmente a acontecer em Israel e em Gaza é que a violência gera mais violência.

A última oportunidade real de evitar o trágico conflito travado entre Israel e o Hamas foi destruída por um único assassinato: o do primeiro-ministro israelita Isaac Rabin em 1995. O assassino não era um militante palestiniano, mas um extremista israelita que se opunha aos Acordos de Oslo, através dos quais Rabin procurava um acordo de "terra por paz", que era um anátema para os radicais israelitas, para quem a soberania judaica na Terra Santa é inegociável.

O assassinato de Rabin aconteceu no final de uma manifestação pela paz com a presença de mais de 100 mil israelitas, esperançosos num fim das hostilidades entre Israel e os palestinianos. Na época, essa esperança parecia realista.

Os grandes beneficiários do assassinato foram os nacionalistas israelitas, sobretudo Benjamin Netanyahu, o líder do partido de Direita Likud. Netanyahu rejeitou os Acordos de Oslo, porque eles exigiam que Israel se retirasse dos territórios que ocupou após a Guerra dos Seis Dias em 1967. Num protesto contra os Acordos e contra Rabin, Netanyahu liderou uma simulação de cortejo fúnebre completo, com um caixão e uma corda de forca.

Nos anos que se seguiram ao assassinato de Rabin, e particularmente após o fracasso na obtenção de um acordo em Camp David em 2000, os extremistas de Direita ganharam poder em Israel e a perspetiva de alcançar um Estado Palestiniano viável nos territórios ocupados praticamente desapareceu. Ao mesmo tempo, o fracasso do movimento secular Fatah, do líder palestiniano Yasser Arafat, em conseguir a criação de um Estado Palestiniano fortaleceu o Hamas islamista, que, juntamente com outras organizações militantes palestinianas, baseia a sua legitimidade no assassinato de israelitas (bem como de pessoas acusadas de colaborarem com Israel).

Com o Hamas a alargar a sua influência (e a exportar a sua violência) a partir de Gaza, que controla desde 2007, para a Cisjordânia ocupada por Israel, onde a Autoridade Palestiniana (AP) controlada pela Fatah está nominalmente no comando, um número crescente de israelitas apoiou as medidas repressivas. Netanyahu prometeu e com a infeliz AP incapaz de travar a expansão implacável dos colonatos judaicos na Cisjordânia, o ciclo de extremismo e violência continuou.

Netanyahu lidera agora o Governo mais fanaticamente nacionalista da história de Israel - um Governo que inclui o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, cujas responsabilidades incluem a administração de uma grande parte da Cisjordânia ocupada. Smotrich incitou repetidamente à violência contra os palestinianos.

Em fevereiro, depois de um palestiniano ter morto a tiro dois colonos israelitas, centenas de israelitas atacaram Huwara, uma aldeia palestiniana próxima, em cenas que lembram os pogroms cossacos contra colonatos judaicos na Rússia, há mais de um século. Os israelitas atearam fogo em Huwara, deixando um aldeão morto e outros feridos. Tal como a polícia russa, quando estava em curso um pogrom, as forças israelitas na área não intervieram para proteger os residentes ou prender os perpetradores.

Nada disto desculpa as atrocidades cometidas contra civis israelitas pelos terroristas do Hamas que mataram mais de 1000 israelitas, a maioria deles civis indefesos, incluindo mulheres e crianças. Vídeos horríveis mostram homens armados do Hamas a atirar, a sangue-frio, contra jovens num festival de música. Em proporção da população, este ataque matou dez vezes mais pessoas do que os ataques da Al-Qaeda ao World Trade Center e ao Pentágono em 11 de Setembro de 2001.

Quando o Hamas ataca civis israelitas, sabe que isso conduzirá a contra-ataques israelitas em Gaza, que matarão e ferirão muitos civis. O Hamas localiza as suas instalações militares em áreas residenciais, esperando que esta tática restrinja os ataques israelitas ou, pelo menos, diminua o apoio internacional a Israel.

O Hamas, supostamente, mantém cerca de 150 reféns e disse que matará um cada vez que Israel bombardear uma casa em Gaza, sem aviso prévio. Os líderes do Hamas certamente se lembram que em 2011, Netanyahu, como primeiro-ministro, estava disposto a libertar mais de 1000 prisioneiros palestinianos, alguns deles terroristas, em troca da libertação de um único soldado israelita cativo, Gilad Shalit. Neste contexto, podem acreditar que Israel não estará preparado para sacrificar as vidas dos reféns para alcançar os seus objetivos militares.

Se é isso que os líderes do Hamas acreditam, poderão descobrir que cometeram um erro. Ainda não se sabe se Israel conseguirá eliminar o Hamas como força militar, mas é claro que na batalha para alcançar esse objetivo, Israel terá de estar preparado para perder muitas vidas, provavelmente tanto de soldados como de reféns.

É difícil saber até onde irá Israel com a sua intenção declarada de negar eletricidade, combustível, alimentos e água aos dois milhões de cidadãos de Gaza, muitos deles crianças. O que é certo é que os crimes brutais do Hamas não dão a Israel o direito de deixar crianças morrerem de fome.

Aos olhos de muitos observadores externos, a causa da autonomia e da criação de um Estado Palestiniano há muito que mantém uma autoridade moral. Agora, essa causa foi manchada pelos horríveis assassinatos e raptos, muitos deles capturados em vídeo, realizados em seu nome. Paradoxalmente, se os palestinianos quiserem alguma vez recuperar a autoridade moral, terão de esperar pela destruição do Hamas. Enquanto o Hamas puder alegar que os representa, o mal que perpetrou manchará a sua causa.

Peter Singer, professor de Bioética na Universidade de Princeton, é autor de Ética Prática, A Vida que Podemos Salvar, Ética no Mundo Real e, mais recentemente, Animal Liberation Now (Harper Perennial, 2023).

© Project Syndicate, 2023.

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