A era dos ornitorrincos

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A Eurovisão é o que dela nos queremos apropriar. Ou como dela nos apropriamos. Eis a sua beleza: serve para desprezar, menosprezar ou, já agora, simplesmente prezar. Nisso é de um pluralismo tremendo. Para muitos, os tais que preferem prezar a Eurovisão e se afastam das teorias da conspiração e do voto geopolítico, esta permite-lhes momentos de puro delírio. Deleite.

Ao contrário do que Salvador Sobral afirmou há um ano em Kiev, o êxito planetário da Eurovisão muito deve ao fogo-de-artifício. Nem sempre assim foi, não tinha de ser, mas, tal como a evolução humana, o seu código genético foi sofrendo mutações época após época. Depois de nos anos 1990 termos estado enguiçados com a Irlanda, os finlandeses Lordi foram tremendamente importantes. Conchita Wurst idem.

Mais melódica e decisiva, porque sintetiza o que há de mais admirável neste festival, foi a sueca Loreen em 2012. Euphoria é um portento que está longe de ser mero acaso: 1) tal como a luso-francesa Myriam Lopes, Loreen é uma sueca de origem berbere já nascida em Estocolmo de pais marroquinos e que encerra uma certa ideia de multiculturalismo; 2) na senda dos Abba, o Reino da Suécia alimentou uma verdadeira armada de autores e compositores no pós-Waterloo, vitorioso em 1974.

Paradoxalmente, foi apenas na última década que o certame se deixou agrilhoar por esta máquina escandinava. Estará relacionado com o facto de o poderoso supervisor-geral da Eurovisão, Jon Ola Sand, uma espécie de Eládio Clímaco norueguês, provir do paralelo 58 ou 59? Daí que o grande desafio de Lisboa 2018 seja saber se Salvador Sobral inaugurou mesmo, há um ano na Ucrânia, a era do ornitorrinco, esse animal único e indefinível, mamífero mas também ovíparo. Estaremos mesmo a caminhar para uma Eurovisão pós-IKEA? Até porque há parafusos que já nos fartámos de aparafusar.

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