A droga boa que combate a droga má faz anos em Portugal

O que é uma droga? O dicionário diz que pode ser um medicamento, um estupefaciente, uma coisa inútil ou má. Introduzida há 40 anos em Portugal, o opiáceo metadona só foi adotado como política número um de combate ao opiáceo heroína duas décadas depois, após a intervenção de fevereiro de 1998 no Casal Ventoso, como parte de uma nova estratégia que descriminalizou o consumo e abandonou o objetivo de "uma sociedade livre de drogas". <em>(Publicado originalmente a 17 de fevereiro de 2018)</em>
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É um princípio de tarde gélido, como têm sido todos em fevereiro. O Sol põe-se num esplendor de luz anilada que funde céu e rio. Estacionada do lado contrário ao do Tejo, na Avenida Infante D. Henrique, a uns duzentos metros de Santa Apolónia, a carrinha branca não atrai a atenção. Não tem letreiros, sinais, nada que a distinga. Só quem sabe o que é e porque está ali a verá, no meio dos outros veículos. Como este taxista que estaciona o carro reluzente no espaço vazio à frente, se dirige à portinhola aberta do lado oposto ao da estrada, é saudado pelo nome por quem está do outro lado, recebe um copinho de plástico que enche com água numa torneira à sua direita, engole o conteúdo e regressa à viatura, nem cinco minutos na paragem e sem disponibilidade para entrevistas. Como ele, muita gente que frequenta a carrinha fá-lo por esta rapidez e discrição, sem salas de espera, sem conversas de circunstância e baixa probabilidade de encontrar conhecidos. Há por isso muitos taxistas e outros motoristas clientes deste serviço, assevera Elsa Belo, da ONG que o gere - a Ares do Pinhal -, e também "jornalistas, advogados, engenheiros e até dois médicos".

Mas, adverte esta assistente social de 47 anos que começou há 21 a trabalhar nesta área, no gabinete de apoio ao Casal Ventoso da Câmara de Lisboa, "temos muita gente sem abrigo. Nos 1200 a 1300 que atendemos todos os dias, cerca de 20% são sem-abrigo - que para nós não são só os que estão na rua, são também os que pernoitam em albergues ou ambientes que não são o ambiente de uma família: pessoas desprotegidas. Para muitas das que vêm às unidades móveis, esse é o único momento em que lidam com alguém de uma estrutura." Quanto ao tempo de permanência no programa, "há gente há 18, 15, 17, 10 anos", informa.

Sim: há de tudo aqui, no programa de metadona de baixo limiar que há exatamente 20 anos dava os primeiros passos em Lisboa, a seguir à intervenção da câmara no Casal Ventoso, a 9 de fevereiro de 1998. João, 50 anos, é um dos clientes mais antigos. Já fez 17 anos disto e é à metadona que dá graças por ter mulher há 16, um filho há 12 e um emprego fixo como funcionário numa junta de freguesia. "Ao fim um mês a tomar comecei a conseguir organizar-me. Bastou não ter de andar fixado em arranjar dinheiro para usar [heroína]. Faz logo uma grande diferença, modifica muito a qualidade de vida. Vim com um amigo que começou a tomar e entrei também para o programa." Neste momento, está numa trajetória de redução da dose diária: "Estava a fazer 70 miligramas e agora pedi para começar a reduzir, para que quando deixar - quero deixar - a síndrome de abstinência seja o menor possível." Síndrome de abstinência, claro: porque a metadona vicia e dá ressaca, como a heroína, há quem diga até que pior. João não parece impressionado com isso, nem com os efeitos secundários desta droga de substituição, um longo rol em que obstipação e perda de libido são os mais referidos: "Não notei nada de mau. Não noto tanto o frio, constipo-me menos." Olha a direito, o rosto pouco marcado, saudável, franco, a fazer duvidar dos dez anos de heroína que diz ter vivido e descreve como "à deriva, a arrumar carros, a viver aqui e ali". E não mente, aliás mal hesita quando, sentado dentro da carrinha, ao lado de um caixote com kits de seringas, é perguntado sobre se parou logo no início da metadona os consumos da outra substância. "Usei ainda durante um tempo, mas era muito mais espaçado." Mas não é suposto que a metadona não permita o efeito da heroína? "Hum, a heroína faz sempre efeito, não é o mesmo que seria se não se estiver a tomar metadona." Sobre as pessoas que conhece que frequentam este programa tem uma análise distanciada: "Algumas conseguem organizar-se, outras limitam-se a mudar de droga [querendo dizer que largam a heroína e passam a usar cocaína, por exemplo]. Enganam-se a elas próprias, ou então habituaram-se àquele tipo de vida e não querem sair. Eu não tenho saudades daquilo, não traz nada de bom." Despede-se com um sorriso, pedindo que não o identifique. "A minha mulher sabe, claro, mas o meu filho não e as pessoas com quem trabalho também não. Venho aqui neste horário para evitar ser visto."

O horário é entre as seis e as sete e meia, o último do dia - as outras paragens incluem Avenida de Ceuta, Praça de Espanha, Lumiar e Olaias; as carrinhas funcionam das 08.30 às 19.30 em dias úteis e das 08.30 às 13.30 ao fim de semana. Nesta hora e meia em Santa Apolónia, aparece cerca de uma dezena de clientes do copinho de xarope que cheira a banana mas tem, garante o enfermeiro Paulo Caldeira, que é quem calibra as doses e as entrega, "um sabor muito desagradável para certificar que nos casos em que as pessoas que estão no outro programa, o de alto limiar, levam isto para casa não se corra o risco de alguma criança tomar". Há sobretudo homens - dos 1262 clientes registados em 31 de dezembro de 2017 neste programa, gerido pela associação Ares do Pinhal, eles são 85%, sendo a média de idades dos dois géneros 44 anos - mas surgem também duas jovens mulheres sem qualquer sinal exterior de dependência. São, dizem os técnicos da carrinha, muito recentes no programa. Mal bebem a metadona afastam-se rapidamente, sem dar hipótese a uma abordagem jornalística. Um homem estrangeiro (polaco?) queixa-se ao enfermeiro de ter "passado mal", com ressaca. Paulo Caldeira verifica no portátil onde assinala presenças e doses sob cada nome e responde: "É porque faltaste, não vieste dois dias." O homem contrapõe: "Mas piquei... [usou heroína]" Paulo sorri, esclarece: "Não foi o suficiente para colmatar a falta da metadona." Depois explica ao DN: "Se tomarem uma dose de metadona adequada para si, o que é algo que temos de afinar com eles até acertarmos, podem passar um ou dois dias sem tomar porque o efeito da metadona é bastante prolongado (ver texto nestas páginas). Mas se falharem várias tomas e a dose não estiver ainda afinada mesmo usando heroína podem ressacar."

"Estou velha para andar a roubar"

Baixo limiar, precisamente, quer dizer "baixo limiar de exigência". Como explica o site do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências), estes programas, que coexistem com os de "alto limiar de exigência" (estes últimos a funcionar nos CAT, ou Centros de Atendimento a Toxicodependentes), "destinam-se a promover a redução do consumo de heroína por via da sua substituição por metadona (...) sem exigência imediata da abstinência (...), fomentando o aumento e regularidade dos contactos do consumidor com os profissionais de uma equipa sociosanitária." Qualquer pessoa pode ter acesso ao programa, explica Elsa Belo, desde que teste positivo para o consumo de heroína numa análise à urina feita ali mesmo. Se assim for, é inscrita com um número no sistema e começa com uma dose baixa de metadona - geralmente 30 miligramas - até se encontrar o valor adequado, que corresponde ao momento em que a ânsia de consumir heroína desaparece. O que não significa, como já assinalado, que quem usa metadona não continue a usar heroína ou outras substâncias ilegais.

É o caso de Carla, 42 anos, que regressou ao programa de baixo limiar há "seis, sete meses", depois de estar muito tempo a ser seguida no CAT de Xabregas, num programa de alto limiar, ou seja, com - em princípio - exigência de abstenção de consumo, análises e consultas periódicas. "Recaí", afirma, olhos muito sérios nos olhos de quem a questiona. "Estive mais de 20 anos a consumir. Fiz tratamentos e mais tratamentos, a minha família meteu-me em todos os lados e mais algum, a pagar e sem ser a pagar. Fui para o CAT, estive sete anos muito bem e agora olhe."

Carla tem três filhos (de 19 e 13 - dois são gémeos), que estão a viver com um dos irmãos e não os vê "há muito tempo, mais de dois anos". Porquê? "Não vou aparecer nesta triste figura. Vestia o 42, agora visto o 32. Esta pessoa não sou eu." Ainda assim, os filhos conheceram esta pessoa: "Tive-os quando andava a consumir. Estive presa com eles, grávida." A prisão, diz, foi por tráfico e consumo." Como sobrevive agora? O mesmo olhar: "Sou feirante. Estou cansada, um bocado velha para andar a roubar. Apanho coisas do lixo, ando pela cidade à procura, há algumas que me dão e vou vender na Feira da Ladra. E tenho o rendimento mínimo." A sua dose atual de metadona é bastante alta - 110 miligramas - e toma-a todos os dias exceto ao fim de semana, por causa da feira. Quanto aos consumos de droga de rua, assume que se trata sobretudo de cocaína, embora "também dê na castanha [heroína] de vez e quando, porque não quero aumentar mais a dose de metadona." Uma justificação algo mirabolante de alguém que acha que um dos seus grandes problemas é a solidão. "Quando estava sem usar trabalhava em limpezas e isolava-me muito em casa. Vivia com quatro animais, um gato e três cães - agora estão numa instituição - passeava, bebia o meu café... mas sentia muito falta de companhia. Não conseguia dormir, levantava-me, ia passar a ferro, arrumar a casa, começava a pensar nos meus filhos, dava-me a depressão... E pronto, arranjei um namorado que fuma coca e ganzas [haxixe] e voltei a consumir." Tem o plano de sair de Lisboa, mas é o único que adianta. "Sabe uma coisa? Não gosto de fazer planos. Normalmente quando fazemos planos alguma coisa corre mal. Uma coisa de cada vez."

Para quem ache que o único plano possível para alguém com uma dependência é "curar-se" - uma visão que foi durante décadas a que imperou na política de "luta contra a droga" -, dir-se-á que a metadona não serve de nada a Carla. Elsa abana a cabeça: "O nosso trabalho é diminuir os riscos para estas pessoas e para a sociedade. Estes programas diminuem o ruído social, porque as pessoas deixam de consumir ou consomem menos, mudam de modo de consumo - passam a fumar em vez de injetar, o que traz muito menos riscos para a saúde." Um trabalho silencioso, diz esta técnica, mas que nos trouxe onde estamos: "As pessoas em geral não se questionam sobre porque é que desapareceu a preocupação com a toxicodependência e tráfico que há 20 anos estava no top nas sondagens, mas olhando para trás percebe-se que a partir de uma certa altura deixou de se falar de droga."

"Mudei de ideias brutalmente"

É como se na política da droga se tivessem passado as fases todas que ocorrem ante um acontecimento traumático: do choque à negação e à negociação, da raiva e da depressão à aceitação. Incluindo na forma como os próprios técnicos foram evoluindo, assume Miguel Vasconcelos, 58 anos, psiquiatra e coordenador do CAT das Taipas, o mais antigo em Lisboa, criado em 1987: "Quando entrei nas Taipas, em 1992, não se fazia metadona. Só começámos a fazer terapia de substituição em 1994, com outra substância, o LAAM (levacetilmetadol, outro opiáceo sintético), que acabou suspenso porque havia pessoas que morriam de ataque cardíaco." Rodrigo Coutinho, 64 anos, colega do CAT de Xabregas e responsável da Ares do Pinhal, corrobora: "Estive na criação do CAT das Taipas. E a partir de uma certa altura começámos a perceber que as nossas respostas, que eram sobretudo um programa de desabituação com fármacos e depois terapia psicológica, não eram suficientes." Faz uma pausa. "Mudei de ideias brutalmente, sabe? Quando entrei nisto, em 1985, era para mim um universo totalmente desconhecido - e tinha o tal preconceito, a ideia de que a dependência era uma fraqueza de espírito. Fui aprendendo muito. Também era contra a metadona - achava que aquilo agarrava, que era mais uma substância, mais uma dependência. Hoje olho para as coisas com um olhar cada vez menos preconceituoso."

Olhar que é cada vez mais o do sistema - em vez de estigmatizar e julgar, cuidar sobretudo da capacidade de as pessoas se manterem em relação com as estruturas, criando oportunidades de melhoria e minimizando riscos para os próprios e os outros - uma alteração de paradigma que se dá em 1998/99 e se materializa da Estratégia de Luta Contra a Droga aprovada pelo governo de Guterres, descriminalizando o consumo, apostando na redução de danos e criando a possibilidade das salas de consumo assistido (que até hoje não viram a luz do dia). Um olhar que talvez explique que passando das carrinhas para a sala de espera de um CAT e dos programas de substituição de baixo para os de alto limiar nem sempre se notem grandes diferenças. Veja-se Jorge, 48 anos, a trabalhar no seu Macintosh enquanto aguarda a vez para a consulta a que vem de dois em dois meses. É professor universitário e toma há seis anos buprenorfina, um opiáceo como a metadona mas que se compra na farmácia, mediante a receita que lhe dão na consulta. Mas Jorge não só continua a consumir droga de rua como o seu problema é o crack - cocaína fumada - que nada tem a ver com opiáceos. "É extremamente aditivo. Fiquei agarrado em duas semanas. Já tinha idade para ter juízo, ainda passei uma temporada a pensar que me estava a controlar... Mas percebi que tinha um problema." O problema nunca chegou ao ponto de o fazer perder o emprego nem a estrutura de vida, motivo pelo qual tem acesso à buprenorfina, receitada a quem mantém as coisas em controlo. Mas não é claro para ele o motivo pelo qual, sendo a sua dependência cocaína, está a receber um opiáceo. De facto, não há medicamentos de substituição específicos para a cocaína, porém existe evidência, assevera Rodrigo Coutinho, de que os opióides com a metadona e buprenorfina "previnem a cocaína", ou seja, podem contribuir para algum equilíbrio num quadro de dependência dessa substância. Se a coisa está a funcionar no caso de Jorge não é claro, como nem sempre é clara a distinção entre os clientes dos dois programas, de alto e baixo limiar. Aliás, parece até que os números nacionais para os dois estão misturados. No relatório anual do SICAD, o último dos quais, referente a 2016, foi publicado no início deste mês, contabilizam-se 17011 pessoas, correspondentes a mais de 61% dos utentes de ambulatório dos serviços de atendimento a toxicodependentes, como estando em programas de substituição da heroína; 11526 (67%) a tomar metadona, estando os restantes a usar buprenorfina. O relatório não refere números dos programas de baixo limiar, mas, contactado pelo DN, o SICAD fornece dados ligeiramente diferentes: 10.918 pessoas a receber metadona através de programas de tratamento "em meio livre" mais 874 em meio prisional (somando 11 792) e 5 801 a usar buprenorfina; 1996 em programas de baixo limiar. Uma vez que só em Lisboa, no programa das carrinhas, a ONG Ares do Pinhal refere ter 1262 clientes, será possível que em todo o resto do país só existam 700 e tal pessoas neste tipo de programa? João Goulão, diretor do SICAD, admite que haja mistura nos números: "Trabalhamos com aquilo que nos enviam, porque já não somos nós a administrar os programas." Quanto ao facto de o número de pessoas em programas de substituição para a heroína pareça variar pouco - em 2008, eram 17100 - não preocupa Goulão: "Há pessoas que entram, pessoas que saem e muitos utilizadores de longo curso, que continuam sujeitos a esta terapêutica e se calhar vão mantê-la até ao fim da vida."

"É como os diabéticos com a insulina"

Não Carlos, 59 anos, motorista de táxi. "O meu processo de saída das drogas foi muito mais longo que o tempo nas drogas. Costumo dizer que tenho pena de não ter ido para as drogas mais cedo, porque esse processo de saída mudou a minha relação com os outros e comigo próprio. A forma como lido com a solidão, com a frustração." Depois de "quase alcoolismo" na adolescência, era um homem mais que feito, com 35 anos e um emprego estável, quando se viu dependente de heroína e cocaína por via, diz, de uma relação com uma pessoa que usava. "Estive dois anos com consumos ativos, entre 1993 e 95, e a dada altura percebi que precisava de ajuda. O meu pai disse-me que tinha de ser internado. Passei nas clínicas do famigerado Dr. Pinto Coelho, gastei lá uma pipa de massa e nada, aquilo não serve para nada, e depois estive dois anos na comunidade terapêutica da Ares do Pinhal. Saí de lá em 1997 e recaí. Aí o Dr. Rodrigo Coutinho propôs-me entrar no programa de metadona e assim foi. Inicialmente tinha de ir todos os dias buscá-la e isso propicia uma disciplina que se vai introduzindo na nossa mente. E quando se começa a pensar em consumos é mais fácil porque temos aquela almofada. Depois, quando já havia confiança em mim, já levava para casa para uma semana." Não se lembra de efeitos secundários nem de efeito nenhum de especial: "Claro que se trata de uma droga, mas nunca dei por que tivesse um efeito psicoativo. E não tem poderes mágicos, claro. Mas talvez o principal efeito tenha sido dar-me tempo para que tudo aquilo que fui aprendendo no Ares do Pinhal fosse interiorizado para fazer parte de mim. Deu-me a possibilidade de fazer uma vida normal."

Uma espécie de reaprendizagem da vida que lhe permitiu, ao fim de um ano e tal, concluir com o médico de que era altura do desmame. "Fomos baixando a quantidade até baixar completamente. Não custou muito."

O facto de ter estado tão pouco tempo a tomar metadona, porém, não o faz sentir-se um exemplo. "Sei que há pessoas que conseguem sair das drogas sem nada, mas a metadona para mim foi essencial." É, diz, esse o motivo porque quis falar com o DN: marcar a ideia da importância destes programas. "É que a metadona ajuda as pessoas a ter uma vida normal, emprego, filhos. E se há quem fique a tomar a vida toda, é como os diabéticos que precisam da insulina."

(Publicado originalmente a 17 de fevereiro de 2018)

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