A diva e o panda

O mais espantoso desta história é que tudo começou por um gesto de puro e deslumbrante amor.
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Chovia chuva em Xangai. Naquela noite tempestuosa, Fevereiro de 1936, um homem agonizava sozinho no quarto de um hospital. O cancro manifestara-se já ele estava na China, em busca do bicho raro. O tumor na garganta, por excesso de tabaco e álcool, alastrara pelo corpo todo, e agora ele estava ali a morrer, na solidão de si mesmo. Filho de um advogado de sucesso de Nova Iorque, descendente de uma família abastada da cidade, formara-se na elitista Harvard e era presença assídua nas colunas sociais. Bonito, culto e sensível, muito inteligente, William Harkness Jr. era novo, tinha 34 anos quando decidiu ir à China para capturar e trazer para a América um panda-gigante. Panda, panda.

Na noite final, a milhares de quilómetros de distância, Ruth regressava a casa vinda do cabeleireiro, onde experimentara um novo e luxuriante champô. Manhattan atravessava um dos invernos mais rigorosos e frios de que havia memória e, ao chegar ao seu belo apartamento no West Side a caminho de mais uma animada diner party, a criadita mulata deu-lhe a notícia terrível: William morrera. Ruth perdia assim o amor da sua vida, "alguém que me compreendia e me conhecia por inteiro em tudo o que eu era e fazia, alguém com quem eu pude deixar cair todas as minhas barreiras e defesas", dirá ela numa carta a um amigo de longa data. Ruth nascera noutro meio, em Titusville, na Pensilvânia, numa terra marcada pelas fortunas do petróleo, com mansões opulentas que exerciam sobre ela, menina de origens humildes, um estranho sentimento de atracção e desdém. Entre os traços de carácter que herdara da sua família avultavam o estoicismo austero, a rectidão de princípios - e uma formidável força vital. Passou a infância num meio claustrofóbico, sonhando fugir dali, e uma colega da escola recordou-a como alguém com quem não era fácil estabelecer contacto mas que, uma vez conhecida, revelava a sua bondade intrínseca e tinha o dom da verdadeira amizade. Após um semestre na Universidade do Colorado, foi dar aulas de inglês em Cuba e, com as magras poupanças, rumou a Nova Iorque. Dotada de uma beleza invulgar, com traços exóticos, e de um gosto requintado, tornou-se estilista de moda e impenitente boémia, dizendo que só detestava duas coisas neste mundo: ter de se ir deitar à noite e ter de se levantar de manhã. Os seus cabelos negríssimos e os seus lábios vermelhos fascinaram William, e ao fim de pouco tempo viviam juntos, em sintonia perfeita. Além da atracção física e do sexo (em jeito de brincadeira, Ruth confessava aos amigos que a sua fantasia era ser espancada nas nádegas...), tinham em comum o gosto pelos livros e pela solidão a dois, que os fazia ficarem sufocados de horror no meio de multidões ruidosas. Para Ruth, que sempre sentira que a sua família não a compreendia, a cumplicidade amorosa com William tinha contornos místicos, patentes nas muitas coincidências e acasos inexplicáveis que surgiam amiúde nas suas vidas. A monotonia do casamento era anulada pela alternância de momentos de profunda intimidade e longos períodos de separação, com o marido em viagem, entregue ao mundo (em 1933, William Harkness Jr. foi dos primeiros a trazer para o Ocidente dois exemplares vivos do dragão-de-komodo).

Como já alguém disse, a vida vira num segundo e, num acesso súbito, Ruth Harkness decidiu viajar até à China para concretizar o sonho do seu amado, prestando-lhe assim a derradeira e a maior das homenagens. Pouco tempo antes, os dois filhos do presidente Theodore Roosevelt tinham estado na Ásia em expedição venatória, na qual conseguiram localizar - e matar - um panda-gigante. Ruth Harkness era uma apaixonada pelos animais: resgatava cães da rua, tinha um macaquinho de estimação em casa, ficara devastada em França ao ver um torneio de tiro aos pombos. Nunca pensou matar o que quer que fosse, queria apenas capturar um ou dois pandas vivos e trazê-los para um jardim zoológico da América. Em Abril de 1936, embarcou no American Trader e, como sempre, fez a viagem em grande estilo, passando as tardes no convés com um whisky com soda numa mão e um cigarro Chesterfield na outra. Xangai era então conhecida como "a Rameira do Este", uma cidade dilacerada pelo ópio, pelo jogo, pela prostituição, o refúgio sórdido dos piores criminosos do planeta. Sem revelar medo algum, Ruth instalou-se no Palace Hotel, onde o marido se hospedara, e embrenhou-se nos preparativos da expedição. Extremamente metódica e obsessivamente organizada, constatou que a viagem de William fora caótica e que um dos seus companheiros lhe ficara com o dinheiro todo, sem prestar contas. Depois, a espera desesperante: Ruth passava os dias deitada na cama do hotel, lânguida e nua, a escrever cartas à máquina para os seus amigos da América enquanto aguardava autorização de partida, entre mil e uma burocracias chinesas. Para matar o tédio, ia às compras, fiel à sua máxima: "Para melhorar o ânimo, nada melhor do que o estímulo de um vestido novo." Às tantas, começou a mergulhar na ansiedade e na depressão, foi assaltada por pesadelos recorrentes, sonhos maus em que uns homens tenebrosos a levavam à força de regresso à América, enquanto ela procurava desesperadamente permanecer na China, a terra dos pandas.

Poucos, muito poucos, tinham conseguido avistar um panda-gigante e ninguém fora capaz de capturar um exemplar vivo. Na Primavera de 1869, o padre e naturalista francês Armand David fora o primeiro a ver e a descrever um panda já morto e, muitos anos depois, nas vésperas da viagem de Ruth, o título de primeiro ocidental a avistar um panda vivo ainda era acesamente disputado entre o brigadeiro George Pereira, adido militar britânico em Pequim, e o missionário J. Huston Edgar.

Os pandas são seres fugidios e elusivos, bichos solitários, tímidos e delicados, com dificuldades de acasalamento. Apesar de serem carnívoros, 99% da sua dieta é feita à base de bambu, que ingerem durante mais de 13 horas por dia. Contudo, o seu metabolismo lento, o facto de só digerirem 17% do que comem e a sua dieta de baixas calorias impedem-nos de acumularem reservas de gordura suficientes para hibernarem, pelo que têm cérebros e rins mais pequenos do que os de outros mamíferos do mesmo tamanho, e as suas crias são também mais pequenas e mais frágeis. Quase metade das gravidezes são de gémeos, mas só um deles sobrevive. Como disse um naturalista, os pandas desafiam as leis da evolução, pois, apesar de se mostrarem incompetentes nas funções mais básicas de sobrevivência, como a propagação da espécie ou a adaptação ao meio envolvente, resistem há milhões de anos e são um dos membros mais antigos da família dos ursos, porventura o mais antigo, bem mais antigo do que os seres humanos. Alguns cientistas garantem que ter sobrevivido tantos milhões de anos com uma dieta feita exclusivamente à base de bambu é um prodígio extraordinário, indício do génio evolutivo e biológico dos pandas. Outros consideram que a maior arma dos pandas-gigantes é o seu ar ternurento e meigo, irresistível para os milhões de seres humanos que os veneram como um dos animais mais queridos e mais amados do mundo, usado como arma diplomática desde há milénios. Em 1941, quando quis agradecer a ajuda norte-americana na 2.ª Guerra, Chiang Kai-shek ordenou que fossem enviados "dois pandas pretos e brancos, cómicos e peludos", para o zoo do Bronx, e, em 2012, a China garantiu o fornecimento de salmão da Escócia para o país inteiro em troca do empréstimo de dois pandas ao zoo de Edimburgo. Isto para não falar, é óbvio, dos pandas oferecidos à União Soviética em 1957 e aquando da histórica visita de Nixon a Pequim, em 1972.

A viagem aventurosa de Ruth Harkness, descrita ao pormenor no fascinante livro The Lady and the Panda, de Vicki Constantine Croke, fez-se através de uma China mergulhada na guerra civil entre nacionalistas e comunistas, um país feudal povoado por milhões de miseráveis, em que metade da população não passava dos 30 anos e três quartos das mortes eram provocadas por doenças já então passíveis de cura. O destino final de Ruth eram as florestas de Sichuan, a maior província da China, do tamanho de França, onde abundavam os salteadores de estrada e os senhores da guerra com exércitos privados crudelíssimos, que decapitavam os inimigos e penduravam as suas cabeças nos postes de telégrafo, em sinal de aviso (um dos chefes mais temidos, Chang Tsung-chang, tinha um harém de 42 concubinas e divertia-se a sodomizar rapazinhos em festas, violando-os à frente de todos). Ruth desenvolvera desde cedo uma enorme compaixão pelos chineses, tratava-os de igual para igual, para espanto e repúdio dos seus amigos ocidentais. Segundo ela, o povo chinês, apesar das terríveis provações por que passava, alcançara o essencial, algo que faltava aos seus parceiros boémios da Quinta Avenida: a paz interior.

Nenhum ocidental chegara até ali. Ser uma mulher a fazê-lo, à frente de uma expedição só de homens, composta por guias absentistas e carregadores viciados no ópio, constituía uma proeza inimaginável. Ruth, sempre elegante e vaidosa, fez o caminho trajando vestidos orientais saídos das mãos dos melhores costureiros de Xangai. À beira de uma estrada, assistiu ao fuzilamento sumário de um ladrão, 37 tiros, a maioria no rosto; "não foi bonito", limitou-se a dizer. Nas aldeias e nos campos, sabia-se de antemão da chegada iminente da americana graças ao "telégrafo de bambu", um engenhoso sistema de comunicações dos povos da montanha, e nem sempre os encontros com os autóctones foram pacíficos ou agradáveis.

"É mais difícil chegar a Sichuan do que entrar no céu", disse o poeta Li Po, um dos autores favoritos da diva dos pandas. Na sua árdua jornada pelos confins da China, entre densas florestas e montanhas mergulhadas numa neblina permanente, caminhando por penhascos e desfiladeiros de cortar a respiração, Ruth Harkness contou com o apoio de um jovem e irresistível explorador chinês, Quentin Young, com quem manteve um tórrido caso, iniciado quando ambos pernoitaram num mosteiro tibetano em ruínas, repleto de pinturas eróticas. Quentin tratava-a como uma princesa, preparava-lhe pequenos-almoços ingleses com torradas quentes e compota da Tasmânia, implorava que ela andasse sempre com um revólver à mão, mas Ruth, muito senhora do seu nariz, raramente obedecia. Separaram-se no final da jornada épica: Ruth, uma mulher emotiva e melodramática, colocou o seu anel de noivado na palma da mão de Quentin e afastaram-se em lágrimas, sem dizer palavra. Quando, tempos depois, ela tentou retomar o contacto, o amante desaparecera: casara, tivera filhos, trabalhava como empregado de um banco em Macau, mostrou-se mais fugidio do que um panda. No entanto, nunca a esqueceu e até há pouco, com 90 anos e a viver na Califórnia, ainda era incapaz de falar dela com distanciamento.

Numa manhã de Novembro, por entre a neblina espessa, a expedição vislumbrou finalmente o animal lendário. E, com grande paciência (Ruth proibira terminantemente o uso de armas), conseguiram capturar um panda minúsculo, com nove semanas de vida, ainda de olhos semicerrados. Ruth, mulher previdente, levara consigo um biberão, amamentou-o com leite morno, cuidou dele com mil desvelos, como se fosse o filho que nunca teve. "A coisa mais preciosa que alguma vez possuí", disse ela, em êxtase. Chamou-lhe Baby desde o primeiro instante e, já em Xangai, quando o animalzinho teve sintomas de doença, chamou de urgência um pediatra, sem se lembrar sequer em falar com um veterinário. A forma instintiva e maternal como Ruth tratou do animal foi a mais adequada, sabendo-se hoje, por exemplo, que os pandas não devem ser tirados do amplexo das mães nos primeiros tempos de vida. Mas o mais maravilhoso de tudo é perceber que também ele lhe salvou a vida, resgatando-a da dor sofrida pela perda do marido, dando um novo sentido à sua existência, e o certo é que, se não fossem os pandas, ninguém hoje saberia quem foram William ou Ruth Harkness.

Depois de uma exasperante espera de algumas semanas, com Ruth extenuada e desfeita em lágrimas de tanto cuidar do seu frágil panda, puderam finalmente regressar à América. Foi um estrondo. Os jornais encheram-se de notícias sobre a criaturinha, relegando para segundo plano o romance entre o duque de Windsor e a divorciada Wallis Simpson. O panda fez as primeiras páginas do Chicago Tribune durante nove dias consecutivos, algo que nunca acontecera com ninguém, incluindo o presidente. A Time escolheu-o como "Animal do Ano" e o Washington Post disse que o nome de Ruth Harkness era conhecido em todas as escolas da América. Ao chegar a São Francisco, o bicho teve uma recepção só comparável à de George Bernard Shaw, e vários zoos do país candidataram-se a ficar com ele. Após aturadas negociações, o Brookfield Zoo de Chicago acabou por comprá-lo por uma avultada quantia, logo coberta pelos astronómicos lucros de bilheteira: 53 mil visitantes no primeiro dia, 325 mil visitantes nos primeiros três meses de exibição, todos queriam ver Su-Lin, a panda bebé (sim, era uma fêmea). A Lloyd's de Londres encarregou-se de segurar aquele que, segundo a Pathé News, era o animal mais valioso do mundo, visitado por milhares de cidadãos anónimos, por naturalistas distintos e por celebridades como Shirley Temple ou Helen Keller.

Ruth Harkness regressaria à China em 1937, numa viagem ainda mais atribulada e corajosa do que a primeira. Xangai vivia agora sob a ameaça nipónica, 250 mil soldados chineses tinham sido chacinados, o Palace Hotel fora devastado por um bombardeamento enquanto Ruth se encontrava lá hospedada. Escapou por um triz. Sem jamais se queixar, a diva reagiu com a altivez habitual, dizendo que, a bordo do navio que a transportara, "o café era péssimo e os cocktails piores ainda". Contudo, sem a presença de Quentin Young a viagem foi melancólica e introspectiva. Ruth passou o 37.º aniversário na companhia de um cavalheiro italiano que para ela abrira o seu melhor tinto da Borgonha, mas sentia-se triste e só. As chuvadas retiveram-na na montanha semanas a fio, permaneceu longos períodos abrigada numa caverna, completamente só. Ruth Harkness, que sonhava ser escritora, teve na escrita o seu refúgio, o melhor antídoto para combater a loucura iminente, perpassada de sonhos com o seu amado William. "A máquina de escrever foi a sua libertação, a sua ténue ligação ao mundo exterior", diz a biógrafa Vicki Croke. Conseguiu trazer mais um panda - ou, melhor, mais outra fêmea, de nome Mei-Mei -, reconquistando o sucesso e o ódio dos seus rivais masculinos. No regresso, apreciou decerto que a Fashion Academy a tenha elegido como uma das mulheres mais bem vestidas dos Estados Unidos da América. Voltaria a Sichuan uma última vez, em 1938, e nessa viagem, curiosamente, decidiu devolver à natureza outro panda que acabara de capturar. Ruth Harkness não tornaria a ter a fama de outrora, de diva dos pandas, e o resto da sua vida foi marcado pelas dívidas e pelo álcool. Ficou destroçada pela morte repentina do seu primeiro panda, ceifado por uma pneumonia avassaladora, viajou pela Índia e pelo Peru, teve ligações episódicas, todas malsucedidas. Em Maio de 1947, fez uma primeira tentativa de suicídio e, pouco depois, em Julho, foi encontrada morta num hotel de Pittsburgh.

O legado de Ruth Harkness é incomensurável. Ao mostrar ao mundo um animal tão amado, em risco de extinção, Ruth deu um impulso decisivo à causa da conservação das espécies. Em 1961, quando se decidiu criar o World Wide Life Fund for Nature, a maior organização conservacionista do mundo, hoje com mais de cinco milhões de membros, o panda-gigante foi imediatamente escolhido como símbolo. Desenhado por Sir Peter Scott a partir da observação de Chi-Chi, um panda-gigante levado para o zoo de Londres em 1958, o logótipo do WWF já foi alterado algumas vezes, mas mantém o animal original, obviamente. O primeiro panda nascido em cativeiro veria a luz do dia não muito depois, no jardim zoológico de Pequim, em 9 de Setembro de 1963. O símbolo do panda teve um papel fundamental na propagação do WWF e da sua mensagem e, graças a ele, e graças à determinação e à coragem de Ruth Harkness, milhões de animais de diversas espécies foram salvos da morte certa.

O mais espantoso desta história é que tudo começou por um gesto de puro e deslumbrante amor, o amor de uma mulher pela memória do seu marido, o seu amor ao mundo e aos animais que nele vivem, ou sobrevivem. Na sua primeira viagem à China, Ruth recebeu as cinzas de William e, depois, deixou-as lá no alto, nas montanhas de bambu e névoa. Há poucos anos, familiares de Ruth regressaram ao local, e também aí deixaram as suas cinzas. Ruth e William repousam hoje juntos, na companhia dos deuses, bem perto do coração selvagem.

Panda, panda, pequeno panda.

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