A ditadura da emoção
Coisas antigas. Penso na cena da festa no filme Pedro, o Louco (1965), de Jean-Luc Godard, em que Jean-Paul Belmondo se cruza com o realizador americano Samuel Fuller (no seu próprio papel). Belmondo diz-lhe que sempre quis "saber o que é exatamente o cinema". Fuller dá-lhe uma resposta que faz parte da história e da mitologia de qualquer cinéfilo. A saber: "O cinema é como um campo de batalha: amor, ódio, ação, violência, morte - numa palavra, emoções."
Que é feito das nossas emoções? A pergunta, ainda que hesitante, sobretudo sem resposta segura, pressupõe um valor primordial. A saber: não há um modelo único e unívoco de sensibilidade a que chamaríamos "emoção", mas sim uma pluralidade que está longe de ser pacífica, estável ou redentora - emoções.
A pergunta é motivada pelo estado das coisas, quero eu dizer, pelo mapa emocional em que vivemos, ou somos obrigados a viver. E pressupõe uma celebração daquela pluralidade a que não é estranha uma militante paixão pela multiplicidade de pistas encontradas no nosso património de histórias e narrativas, em particular nos livros e nos filmes. Aliás, penso também no filme de Wim Wenders, em grande parte rodado em Portugal, que se chama, precisamente, O Estado das Coisas (1982), sobre a atribulada produção de um filme na Praia Grande, sendo o operador de câmara interpretado por Fuller - o que, além do mais, reflete a dívida artística e moral de Wenders (tal como de Godard) em relação a Fuller.
Que está a acontecer para que o nosso mapa emocional se tenha reduzido a uma espécie de catálogo de "provas" de uma noção simplista de emoção? Pergunto-me, em particular, que ideia (ou ausência de ideias) leva tantos repórteres, muitos deles surpreendentemente jovens, a tratar qualquer ajuntamento de alguns milhares de pessoas como "ilustração" de uma emoção que se apresenta (entenda-se: é apresentada) como evidente e universal. Compulsivamente universal, importa acrescentar: a dita emoção é encarada, descrita e celebrada como algo que exclui qualquer diferença de quem não se sinta nela inscrito ou representado - a emoção é mesmo incensada como linguagem de uma razão sem alternativa.
Assim se destroem, na alegria do quotidiano, todas as memórias da História Humana que nos trouxe até aqui. A começar pelo facto de o século XX nos ensinar que nenhuma reunião de seres humanos, por maior e mais impressionante que seja o seu número, pode ser entendida como prova automática de uma razão sem fissuras e, no limite, incontestável. O que não implica qualquer sugestão de igualdade entre as multidões. Traduz, isso sim, a importância de uma fundamental distanciação em relação aos acontecimentos e suas significações, recusando a noção vigente segundo a qual "muita gente junta" é sinónimo de uma revelação transcendental que só podemos aceitar passivamente.
A conjuntura é tanto mais trágica quanto os indivíduos que testemunham sobre a multidão a que dizem pertencer, protagonizando 15 segundos de fama mediática, mais não têm para dizer que não seja: "É uma grande emoção..." Como se tivessem desistido de qualquer diferença individual e não se concebessem a não ser como elos anónimos de um discurso triunfal e triunfante sobre a "emoção" que a todos une, mesmo quando (talvez sobretudo quando) ninguém a define - decididamente, entre o amor e a morte, era de coisas bem diferentes que Fuller falava.
Noutros tempos, o poeta escrevia o amor como "fogo que arde sem se ver". As palavras envolvem uma tensão visceral entre aquilo que está à vista ("fogo") e a sua dificuldade de perceção ("sem se ver"). Tal contradição era a própria raiz, porventura indizível, da emoção vivida. Agora, este é o tempo de uma homogeneização da emoção, estranhamente aproximada, nem que seja por hipócrita negação, do êxtase sexual.
Foi do futebol que, há uns anos, através de uma bizarra lógica confessional, alguns jogadores, devidamente acolitados por outros tantos repórteres, nos propuseram uma curiosa fórmula de purificação emocional: um golo, disseram, "é como um orgasmo". Num significativo défice de pensamento matemático, cada repórter falhou a possibilidade de esclarecer se tal equivalência (A=B) podia ser revertida como num espelho (B=A), perguntando: "Um orgasmo é, então, como marcar um golo?" Poderíamos ter vivido uma revolução da história da sexualidade no mundo ocidental, afastando, finalmente, os incómodos causados pelas elucubrações do avô Freud... mas ainda não foi desta.
Que fazer desta triste sexualização da emoção? Apesar de tudo, só mesmo no futebol a emoção não esconde o seu desalinho e a sua vocação impura - "É a loucura!", dizem eles quando olham para a agitação das bancadas. Observe-se, por isso, um interessante contraponto social: ferindo a utopia da pureza cognitiva do VAR, há dois árbitros suspensos porque se enganaram em 9 cm de fora de jogo... Dir-se-ia uma anedota a apelar à sugestão sexual. Seja como for, os dois réus desencadearam uma polémica nacional capaz de ofuscar os debates da rentrée política - será, no mínimo, emocionante.
Jornalista