A direita sexy de Fillon

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A capa do último número da revista que dirijo é dedicada a um facto que me inquieta especialmente. Estará a direita a tornar-se socialista? Isto é algo que não se pode dizer da direita portuguesa, porque está na oposição, mas sim da espanhola, porque o Partido Popular do senhor Rajoy governou nos últimos cinco anos e é o que continua à frente do executivo, depois de um parênteses tumultuoso de quase um ano, o tempo que demorou a conseguir novamente a investidura. Durante todo este período, além de corrigir os problemas colossais que enfrentávamos desde a recessão de 2008, ou talvez por causa dela, a direita espanhola tem vindo a ocupar o espaço da social-democracia tradicional, abraçando a sua principal bandeira: converteu-se na garantia mais fiável de um Estado de bem--estar inquestionável. No meu país, a saúde continua a ser universal e gratuita, o acesso à educação está generalizado a um preço mínimo e o resto das prestações sociais pelas questões relacionadas com o desemprego ou a dependência dos mais desfavorecidos continua a ser muito mais generosa do que em muitos países da UE. Agora que o PP governa, mas perdeu a maioria absoluta, a sua necessidade de pactuar e de chegar a acordos com o Partido Socialista e outros só pode contribuir para esfumar aquilo que devia ser uma direita liberal e ancorá-lo como o melhor representante da social-democracia. Uma desgraça.

Concretamente, as primeiras medidas que o governo de Rajoy está disposto a adotar são subir os impostos às grandes empresas - porque o PP aceitou a estúpida ideia socialista de que ganham mais dinheiro do que deviam e só contribuem para a carga tributária do Estado -, aumentar o salário mínimo, que é um anátema para qualquer liberal que se preze, e incentivar, dentro de uma ordem, os gastos públicos, sobretudo o gasto social, sempre que não prejudique o objetivo do défice acordado com a UE. Desde há mais de uma década, quando Aznar cedeu o testemunho do partido a Mariano Rajoy, que a direita espanhola tem vindo a perder progressivamente os princípios que alguma vez teve: a necessidade de uns impostos o mais baixo possível, a conveniência de um Estado pequeno e eficaz e a oportunidade de um sistema de proteção social razoável, que não destrua os incentivos para que as pessoas deem o melhor de si mesmas na base do esforço, do mérito e do trabalho. A esperança de uma direita liberal em Espanha desapareceu por completo. Já durante a fase da sua última maioria absoluta, o PP decidiu abominar a ideologia para transformar-se no melhor gestor possível das emergências económicas a que nos tinha conduzido a crise. Agora, governando em minoria como é o caso e obrigado a pactuar cada projeto de lei, o seu futuro passa por instalar-se como um partido apenas eficaz, mas simplesmente inútil para despertar o ânimo do país. À direita espanhola não lhe interessam as ideias nem tem, à partida, qualquer objetivo de rearmar-se intelectualmente, porque simplesmente adotou todas as propostas e os tiques da esquerda e está convencida de que tal estratégia será suficiente para manter o poder o máximo possível.

Mas vocês compreenderão que a mim esta estratégia me pareça repugnante e que esteja a dar saltos de alegria pelos últimos acontecimentos em França, onde François Fillon se converteu no candidato da direita francesa à presidência da República. França é o símbolo de um Estado dirigista. Todos os indicadores económicos desde a participação dos gastos públicos no PIB, de 57 por 100, até aos índices de regulação da economia, fazem do país o paradigma do estatismo no mundo desenvolvido. Quase todos os projetos de reforma do statu quo foram bloqueados pelo poder da burocracia e dos sindicatos, que conseguiram mobilizar a opinião pública e obstruir a mudança. O resultado disso é uma economia com um crescimento fraco, com uma perda gradual da competitividade no marco de uma sociedade rica e conservadora que, a priori, não parece sentir a necessidade ou o desejo de modificar o modelo socioeconómico vigente.

Neste contexto, as próximas eleições presidenciais são fundamentais e podem constituir um ponto de viragem se o candidato d"Os Republicanos, François Fillon, ganhar. Com o Ocidente imerso num período de crescimento muito débil desde a Grande Recessão, em que o sistema democrático-liberal se vê ameaçado pela emergência populista, o centro-direita francês optou pelo liberalismo para enfrentar a decadência económica e o impulso do populismo. Desde uma ótica política, esta viragem tem uma importância capital porque surge como insólita numa Europa onde os partidos da direita adotaram um discurso claramente social-democrata.

Generation Libre, um think tank paladino do liberalismo clássico, fez uma análise ao programa de Fillon que constitui uma verdadeira rutura com o pensamento único que dominou a cena francesa durante os últimos trinta anos. O antigo primeiro--ministro recuperou o espírito liberal do projeto que o centro-direita elaborou nos anos 1980 frente ao mitterrandismo e que lhe proporcionou uma extraordinária vitória eleitoral em 1986. Nas atuais circunstâncias, o plano do candidato d"Os Republicanos à presidência de França é revolucionário, centrado como está num intenso emagrecimento das funções do Estado na economia e na sociedade.

Em matéria fiscal e orçamental, Fillon planeia cortes nos gastos de cem mil milhões de euros, sendo uma das medidas emblemáticas a redução do emprego público em 500 mil pessoas. Em paralelo, propõe-se reduzir os impostos diretos no valor de 50 mil milhões de euros, eliminar o imposto sobre as grandes fortunas e baixar as taxas marginais de tributação das empresas para os níveis médios da OCDE. A diminuição dos impostos direitos seria acompanhada pelo aumento do IVA de 3 por 100. Estaríamos diante do maior ajuste realizado em França desde o Plano Pinay-Rueff de 1959. No âmbito laboral, a direita francesa eliminará as 35 horas de trabalho semanal, baixará as quotizações para a Segurança Social de empresários e trabalhadores, diminuirá os custos do despedimento e passará a fixação dos salários e das condições laborais para a negociação coletiva na empresa. Em paralelo, reduzirá o poder dos sindicatos, ao limitar o tempo consagrado à atividade sindical nas empresas e obrigar a que as decisões fundamentais, por exemplo a convocação de uma greve, só possam ser tomadas com o voto maioritário dos trabalhadores empregados nas empresas ou setores afetados.

No campo educativo, uma iniciativa é especialmente relevante: a concessão de maior autonomia aos centros educativos na gestão dos professores, do tempo escolar, dos métodos de aprendizagem e, sobretudo, na sua gestão orçamental. Nestas três grandes reformas, apesar de haver mais, recupera a filosofia liberal abandonada há trinta anos pela direita francesa, cuja influência se reduziu de maneira substancial no conjunto das forças políticas desse espectro em todos os países da UE, incluindo Espanha. O caminho não vai ser fácil. Fillon deve ganhar as eleições e terá uma séria resistência para empreender o seu programa. Mas a sua aposta no liberalismo como eixo central do discurso de direita é correta, sedutora e corajosa. Se tiver sucesso, terá um poderoso efeito agitador sobre os partidos da direita que sucumbiram aos cantos soporíferos da social-democracia.

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