A desonra de Padre António Vieira

A estátua erguida em 2017 a Vieira podia ter sido encomendada por Salazar. Não surpreende que tenha sido defendida pela extrema-direita. Surpresa é que tenha sido aprovada pelos poderes da democracia sem suscitar escândalo.
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"Nascer pequeno e morrer grande é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra, para morrer, toda a terra. Para nascer, Portugal: para morrer, o mundo." Estas palavras estão inscritas num mural de azulejo colocado em 2008 junto ao local onde vivo e nunca as leio sem me comover. São de Padre António Vieira, que terá nascido na zona, e bastaria conhecer só isto dele para o admirar imensamente: alguém que falava e escrevia e pensava assim, caramba, como não amá-lo?

A nostalgia, a tristeza, a energia, a amargura, a consciência da finitude e do tempo que se esvai, da imensidão do mundo e da vertigem das escolhas, do irremediável de cada caminho por onde entrámos em detrimento dos outros, uma certa raiva magoada por Portugal. Ter isto ao virar da esquina é uma interpelação poderosa, e um tributo adequado. Um homem de ideias e de palavra é nas palavras e ideias, no que universal e magnífico e imorredouro transportam, que melhor se celebra.

Vem isto a propósito de outra suposta homenagem que foi feita a PAV em Lisboa, a já famosa estátua erguida no Largo da Misericórdia, na qual Vieira surge de crucifixo ao alto, rodeado de indiozinhos nus. Confesso que quando vi a notícia sobre a estátua me custou a crer que algo tão obsceno tivesse sido comissionado e colocado no espaço público em 2017, com o beneplácito da Câmara de Lisboa. Há, decerto, monumentos e outras celebrações racistas do imperialismo e colonialismo em Portugal - desde logo, as pinturas na Assembleia da República em que negros surgem aos pés dos brancos portugueses, em atitude de submissão e inferioridade, como se de animais domésticos se tratasse - mas são produto da sua época e como tal devem ser encarados e enquadrados, como uma memória terrível e presente do que sucedeu. Coisa completamente diferente é erguer hoje uma estátua que ostenta a ideologia imperialista e colonialista e racista que observamos nas obras de há 100 anos: o bom missionário, propagador da fé e do império, com os seus pupilos indígenas nus (e como é possível nesta era pós escândalo de abusos sexuais de menores por padres e freiras a Igreja Católica achar boa ideia pôr um homem do clero acompanhado de tenras crianças nuas?), símbolos de todo um povo infantilizado sobre o qual exerce o seu domínio protetor de superior moral e guia civilizacional, espécie de prestimoso pai dos primitivos. Uma estátua que podia perfeitamente ter sido encomendada e aprovada por Salazar - e não por acaso foi "defendida" por um grupo de extrema-direita da ação dos que quiseram contra ela protestar, a 5 de outubro, lendo partes de sermões de PAV e apondo flores junto a ela, em tributo aos povos escravizados, dizimados e "evangelizados" pelo império católico português.

Não me surpreende que a extrema-direita portuguesa defenda o legado imperial e colonial e a superioridade sobre os "descobertos" - é essa a sua principal "ideologia". Também a visão anacrónica e profundamente anti-cristã da hierarquia da Igreja Católica portuguesa objetificada naquela escultura condiz com aquilo a que nos habituou. O pedido de perdão de João Paulo II em Gorée, em fevereiro de 1992, pelo papel da instituição na escravatura entrou por um ouvido e saiu por outro dos clérigos do país que mais escravos traficou - onde já se ouviu uma palavra da Igreja Católica portuguesa sobre o assunto? Onde está a evidência de que refletiu sobre? Como se constata pela estátua em questão, em lado nenhum.

Mas o que me choca deveras nisto é que os poderes da democracia, neste caso a Câmara de Lisboa, tenham dado o OK ao "monumento", assumindo assim que aquela coisa escabrosa é uma homenagem adequada a um dos nossos maiores vultos intelectuais. E que um coro de opinadores tenham saltado sobre quem contra ela protesta, fazendo uma ligação sem qualquer sentido com o derrube de estátuas dos heróis confederados nos EUA e molhando na sopa da enjoativa e ela sim politicamente correta guerra contra o "politicamente correto", sem perderem um segundo a olhar para a estátua (ou será que olharam e não viram?)

É certo que o manifesto do protesto põe em causa PAV, alegando sobre um seu antiesclavagismo seletivo, e que do meu ponto de vista deveria ter ficado claro que era a estátua e não PAV o alvo da iniciativa, mesmo se PAV pode e deve ser alvo de debate (como não?). Mas quem se encarniça contra o protesto e apenas contra ele não pode ignorar que está a alinhar com quem acha que não há problema nenhum na cegueira voluntária sobre a nossa história que aquele objeto simboliza, e com escolhermos representar o horror como glória. Que isto suceda na altura em que finalmente o governo português parece apostado em fazer alguma coisa no âmbito da iniciativa da ONU de celebrar a década dos afrodescendentes de 2015 a 2024 - iniciativa que sugere a existência de memoriais e museus sobre a escravatura e um olhar sobre o passado colonial que dê a perspetiva dos colonizados - é uma triste evidência do quanto estamos atrasados neste debate. Oiçamos Vieira, honremos Vieira: nascer em Portugal não nos deve impedir de ver o mundo, e do mundo ver Portugal. É isso chegar a ser homem - crescer.

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