A DESNECESSIDADE DA INVEJA

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O facto de a última palavra de Os Lusíadas ser "inveja" causa, por vezes, alguma estranheza aos estrangeiros. Mas também há compatriotas nossos que ligam àquela "inveja" um significado especial. Ainda recentemente, José Miguel Júdice afirmava: "Camões terminou simbolicamente Os Lusíadas usando essa palavra, que é a que melhor nos define como povo."

Discordo. A análise do passo final do poema mostra que Camões não teve, ao escrever aquela última palavra do último verso da última estância do último canto de Os Lusíadas, qualquer espécie de intenção simbólica ligada à inveja como nota caracterizadora de um modo de ser lusitano. E isso também não resulta de qualquer dos outros passos em que a palavra "inveja" é utilizada no poema (I, 4 e 39; V, 92 e 93; VI, 55; VIII, 26; X, 113 e 116).

A partir da estância 154 do Canto X, Camões começa por referir a sua humilde condição, dizendo-se completamente ignorado pelo rei, e menciona também o seu saber (honesto estudo), a sua experiência acumulada e o seu engenho, este demonstrado na própria matéria do poema. São as "cousas que juntas se acham raramente". Depois, prossegue, com o célebre oferecimento a D. Sebastião: "Pera servir-vos, braço às armas feito; / Pera cantar-vos, mente às Musas dada" e garante que se o rei vier a aceitá-lo e a lançar-se em condigna empresa guerreira, a Musa camoniana alegremente o cantará em todo o mundo.

Notemos de passagem que há várias simetrias entre o início e o final da epopeia. O poeta, que começa por tratar D. Sebastião como "novo temor da maura lança", e portanto como esperado "jugo e vitupério / do torpe ismaelita cavaleiro", retoma essas imprudentes e belicosas ideias no fim do poema. E também aquele cantar da Musa em todo o mundo ecoa evidentemente o "cantando espalharei por toda a parte" de Lus. I, 2.

Ora, realizando-se o pedido feito pelo poeta às Tágides em I,4, de que lhe dêem um estilo grandíloquo e corrente, de modo a que Apolo mande que as águas do Tejo não tenham inveja às de Hipocrene, agora, no final, anuncia-se que o modo por que a Musa cantará os feitos de D. Sebastião será tal que Alexandre Magno se poderá rever no rei português, sem precisar de invejar a sorte de Aquiles: "sem à dita de Aquiles ter inveja"?

Por um lado, isto é uma referência à defesa do poeta Árquias, de Cícero, na parte em que se diz que Alexandre Magno teria exclamado junto ao túmulo de Aquiles, "- afortunado, ó jovem que tiveres o pregão de Homero para o teu valor!" (pro Archia, 24). O apreço de Alexandre por Homero já tinha sido claramente aludido na estância 93 do Canto V. E esta interpretação textual já estava estabelecida nos comentários do Licenciado Manoel Correia, cura de S. Sebastião da Mouraria, na edição de Os Lusíadas de 1613, cuja grafia modernizo: "A dita de Aquiles foi ter a Homero por pregoeiro de suas obras: ao qual, por este respeito tinha Alexandre Magno inveja (?) O que o Poeta diz nesta octava é que viria tempo em que el-rei dom Sebastião seria senhor d'Africa, & que pera escrever seus feitos e cavalerias, só ele seria necessário, & lhe escreveria sua história, com aquela graça & elegância com que Homero escreveu a de Aquiles (?)"

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