A descoberta de uma nova raça no país de todas as cores

Esses portugueses que gostam de Trump e da sua retórica seriam insultados num dos seus eventos. Aqui, caros compatriotas, vocês não seriam brancos. Seriam castanhos
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Não sei com quem é que eles acham que me pareço", desabafou uma portuguesa, atriz, chegada a Hollywood há poucos meses. Enrola o cabelo castanho nos dedos e conta as vezes em que foi chamada para interpretar "latinas", a designação que por aqui se dá a quem vem da América Central e do Sul. Não foi a primeira vez que ouvi portugueses queixarem-se do mesmo: somos considerados hispânicos nos Estados Unidos, seja qual for o tom de pele. É quase inútil corrigir o erro, insistir que os portugueses não são latino--americanos nem falam espanhol, que temos uma identidade muito nossa. Parece desculpa esfarrapada. E haverá mesmo um país na Europa a falar a mesma língua dos brasileiros?

A designação oblitera Portugal de um mapa que parece estar sempre nublado deste lado do Atlântico. E traduz uma sobranceria simples: aqui, os americanos "a sério" são os que têm pele quase translúcida. O resto são os "outros" - asiáticos, africanos, e sobretudo hispânicos.

A estes chamam de brown people. Gente castanha, com a pele tostada pelo sol, que se vê a aparar o jardim e a limpar casas de banho. A atriz faz de empregada doméstica ou bomba latina. O ator faz de traficante mexicano. A empregada de mesa não recebe gorjeta porque os clientes do restaurante "só dão gorjeta a cidadãos", e ela, com a sua cor castanha, de certeza que passou a fronteira na calada da noite, por um qualquer túnel na fronteira com o Texas.

É o que se ouve de uma certa fação da população, a mesma que está enamorada com Donald Trump e a sua promessa de construir um muro entre os EUA e o México. A mesma que acredita que os "castanhos" e os "pretos" estão a rebentar com a segurança social, que desvaloriza o horror da escravatura. A que não quer ouvir falar espanhol porque o inglês é a língua oficial. A que se considera a raça dos "americanos a sério".

Quem vem de Portugal é apanhado na curva entre estas dinâmicas. Esta visão tragicamente racista expõe a hipocrisia dos americanos "a sério". Que raça é essa, pergunto, quase divertida, porque sei que a resposta vai ser um disparate. Os únicos americanos a sério nesta terra abençoada são os nativos, que um dia viram uns homens brancos chegar com barcos e roupas esquisitas a declararem que descobriram este lugar. Os nativos viram as suas terras, costumes e gentes usurpadas por homens que nasceram noutra parte do mundo. Perguntem aos membros que restam da tribo miccosukee o que é que acham dos "brancos" que vieram ocupar a Florida.

Aqui, toda a gente descende de imigrantes. Vieram de Inglaterra, da Irlanda, da Escócia, da Itália, da Holanda. Se são brancos e de olhos azuis, é porque os antepassados nasceram noutros cantos do mundo. Como é que sucede haver uma raça de americanos "a sério" com ADN estrangeiro?

Este é um dos fundamentos da profunda divisão política e social que aflige este país, the land of the free. De um lado, os que acreditam numa visão da América que defende a liberdade de expressão, o sonho de começar do nada e vencer na vida, num multiculturalismo que torna as interações diárias ricas e diversas. Um país que assenta nos imigrantes. Do outro lado, os que querem proteger uma grandeza que acreditam ter sido desmantelada pelos "outros". Make America great again baseia-se nessa crença de que este país foi grandioso um dia e agora caiu na desgraça. Um dia, quando? Nos anos de segregação racial, quando os negros não podiam usar as mesmas casas de banho que os brancos? Quando as mulheres não podiam abrir conta bancária?

Esta nostalgia por um passado difuso esbarra com a realidade. Nunca houve tanta liberdade e diversidade na América. Sim, o fosso económico entre ricos e pobres está cada vez maior, mas, em termos de liberdades sociais, esta é a época dourada - uma em que homossexuais não são presos, em que o aborto é legal, em que o divórcio não exige prova de culpabilidade e existem leis para proteger de discriminação os grupos minoritários.

Querer regressar ao passado é um desejo sobretudo de quem beneficiou do racismo, machismo e outras injustiças de má memória. Portugal, que também tem problemas sociais relacionados com questões históricas de racismo, é comparativamente mais homogéneo. Foi por isso que quando li comentários de apoio às declarações polémicas de Clint Eastwood, que acha que o politicamente correto estragou a América e que quem se queixa de racismo é um bebé chorão, fiquei atónita. Que ironia. Olhei para as fotos de perfil: todos "brancos". Esses portugueses que gostam de Trump e da sua retórica seriam insultados num dos seus eventos. Aqui, caros compatriotas, vocês não seriam brancos. Seriam castanhos. Essa tez que vos escuda do racismo indesculpável no Sul da Europa seria olhada de lado pelos "verdadeiros" americanos.

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