"Reina o Caos" declarou enfática e acertadamente o Daily Mail. Esta é uma má notícia não só para o Reino Unido, mas também para todo o continente. Após meses de negociações prolongadas, ainda não sabemos se o Reino Unido sairá realmente da União Europeia e, em caso afirmativo, em que termos. Parece que estaremos preocupados, senão obcecados, com o Brexit por um período indefinido, negligenciando muitos outros assuntos prementes..A ideia propagada por Theresa May e pelas autoridades europeias de que "existem apenas duas maneiras de sair da UE: com ou sem acordo" é enganosa. A opção sem acordo não existe, porque é impossível construir um muro no canal da Mancha que isole efetivamente o Reino Unido da UE. Vinte mil leis e regulamentos que unem ambos os lados precisam de ser desenredados de uma forma ou de outra. As regras antigas precisam de ser substituídas por novas. O período entrementes seria de dor e caos. A escolha é entre mais caos ou menos caos, mas algum tipo de acordo teria de ser encontrado no final. A questão é: que preço estão ambos os lados dispostos a pagar? Os britânicos podem estar dispostos a pagar um preço mais alto, mas os cidadãos do outro lado do canal podem mostrar-se menos recetivos a assumir os encargos inevitáveis desse divórcio. Afinal, eles não votaram no Brexit e os seus líderes não os prepararam para as suas dolorosas implicações..Isto leva ao aspeto mais preocupante de todo este caso. Desde o referendo do Brexit que assistimos a um mal-estar democrático chocante. A situação é paradoxal porque foi dito que o Brexit era sobre a "vontade do povo", trazendo o poder de volta da Praça Schuman, em Bruxelas, para "a mãe dos parlamentos" no rio Tamisa. Esta máxima foi invertida nos últimos três anos..A democracia, na sua essência, é sobre a mediação de interesses em conflito de maneira ordenada. O consenso é geralmente difícil de obter, mas a democracia deve assegurar que as minorias perdedoras aceitem decisões tomadas de maneira processualmente acordada. Isso requer um diálogo genuíno, uma disposição para chegar a compromissos e o respeito pelos opositores políticos e as suas visões conflituantes. Nós vimos pouco disso durante a saga do Brexit, em parte porque o Brexit foi decidido num referendo, e os referendos geram a síndrome do plebiscito com pouco espaço para deliberação e amplo espaço para demagogia. Problemas complexos são reduzidos a uma escolha simples e o vencedor "ganha tudo", sem necessidade de procurar um compromisso. Contudo, na ausência de estruturas democráticas sólidas a nível europeu, existe sempre a tentação de usar o referendo para legitimar decisões difíceis. Testemunhámos isso não apenas no Reino Unido, mas também na Holanda, na Itália e na França. (Alguns países, como a Irlanda, exigem legalmente um referendo antes da ratificação dos principais tratados internacionais.) Todos esses referendos europeus pareceram mais uns festivais de populismo do que de democracia. Isto apenas enfatiza a urgência de fazer da democracia o principal objetivo da agenda de reformas da UE. A união precisa de encontrar formas institucionais para aumentar a participação dos cidadãos ou então os cidadãos rebelar-se-ão..Os parlamentos nacionais também parecem mais fracos depois do Brexit. Os continentais têm sido em grande parte espectadores passivos do melodrama do Brexit, rezando e esperando que o senhor Barnier entregue algo digerível para todos os diversos eleitorados locais da UE. A Câmara dos Comuns britânica tentou afirmar a sua soberania, mas esse nobre esforço terminou em farsa. Com o passar do tempo, as clivagens políticas dentro da Câmara multiplicaram-se, sem que ninguém fosse capaz de formar uma maioria viável, e muito menos plausível. Simon Jenkins compreendeu bem as origens e as implicações desta doença:."O Parlamento britânico nunca mais se pode proclamar como a 'mãe dos parlamentos'. É mais uma velha dama que murmura imprecações numa esquina, e a razão é que ainda está a decretar procedimentos concebidos para o tribalismo polarizado do século XVIII. Ritualiza o partidarismo e o desacordo e não se atreve a unir-se. É assim que as nações derivam para a guerra, com os seus líderes a percorrer os corredores do poder, de peito inchado e a clamar a ira dos deuses contra os seus inimigos. Facadas verbais superam os apertos de mão.".Os parlamentos individuais no continente têm diferentes histórias, organização e procedimentos, mas o partidarismo ritualizado e os desacordos flagrantes são notórios na maioria deles. Não admira que as sondagens demonstrem a pouca confiança do público nos parlamentos. No entanto, o sistema de representação parlamentar, ainda que disfuncional, continua a ser o principal pilar da democracia na Europa..Costuma-se dizer que, após a revolução neoliberal, os mercados têm uma vantagem sobre a democracia; os parlamentos já não podem adotar políticas não apreciadas pelos mercados. No entanto, a saga do Brexit sugere que os mercados nem sempre conseguem fazer as coisas como querem. Os mercados nunca ficaram felizes com o Brexit e, quando o referendo ignorou a sua preferência, pediram que o processo de saída da UE fosse rápido e consensual. Claramente, os seus pedidos caíram nas orelhas moucas dos atores democráticos. A democracia mostrou-se não apenas ineficaz, mas também obcecada consigo própria. Isso não augura nada de bom para o futuro. A democracia e o capitalismo precisam de trabalhar juntos, senão podemos esperar impasses, protestos e caos. Os populistas prosperam nessa atmosfera de caos, não apenas no Reino Unido mas também no continente..Jan Zielonka é professor de Política Europeia na Universidade de Oxford e autor de Counter-Revolution - Liberal Europe in Retreat.
"Reina o Caos" declarou enfática e acertadamente o Daily Mail. Esta é uma má notícia não só para o Reino Unido, mas também para todo o continente. Após meses de negociações prolongadas, ainda não sabemos se o Reino Unido sairá realmente da União Europeia e, em caso afirmativo, em que termos. Parece que estaremos preocupados, senão obcecados, com o Brexit por um período indefinido, negligenciando muitos outros assuntos prementes..A ideia propagada por Theresa May e pelas autoridades europeias de que "existem apenas duas maneiras de sair da UE: com ou sem acordo" é enganosa. A opção sem acordo não existe, porque é impossível construir um muro no canal da Mancha que isole efetivamente o Reino Unido da UE. Vinte mil leis e regulamentos que unem ambos os lados precisam de ser desenredados de uma forma ou de outra. As regras antigas precisam de ser substituídas por novas. O período entrementes seria de dor e caos. A escolha é entre mais caos ou menos caos, mas algum tipo de acordo teria de ser encontrado no final. A questão é: que preço estão ambos os lados dispostos a pagar? Os britânicos podem estar dispostos a pagar um preço mais alto, mas os cidadãos do outro lado do canal podem mostrar-se menos recetivos a assumir os encargos inevitáveis desse divórcio. Afinal, eles não votaram no Brexit e os seus líderes não os prepararam para as suas dolorosas implicações..Isto leva ao aspeto mais preocupante de todo este caso. Desde o referendo do Brexit que assistimos a um mal-estar democrático chocante. A situação é paradoxal porque foi dito que o Brexit era sobre a "vontade do povo", trazendo o poder de volta da Praça Schuman, em Bruxelas, para "a mãe dos parlamentos" no rio Tamisa. Esta máxima foi invertida nos últimos três anos..A democracia, na sua essência, é sobre a mediação de interesses em conflito de maneira ordenada. O consenso é geralmente difícil de obter, mas a democracia deve assegurar que as minorias perdedoras aceitem decisões tomadas de maneira processualmente acordada. Isso requer um diálogo genuíno, uma disposição para chegar a compromissos e o respeito pelos opositores políticos e as suas visões conflituantes. Nós vimos pouco disso durante a saga do Brexit, em parte porque o Brexit foi decidido num referendo, e os referendos geram a síndrome do plebiscito com pouco espaço para deliberação e amplo espaço para demagogia. Problemas complexos são reduzidos a uma escolha simples e o vencedor "ganha tudo", sem necessidade de procurar um compromisso. Contudo, na ausência de estruturas democráticas sólidas a nível europeu, existe sempre a tentação de usar o referendo para legitimar decisões difíceis. Testemunhámos isso não apenas no Reino Unido, mas também na Holanda, na Itália e na França. (Alguns países, como a Irlanda, exigem legalmente um referendo antes da ratificação dos principais tratados internacionais.) Todos esses referendos europeus pareceram mais uns festivais de populismo do que de democracia. Isto apenas enfatiza a urgência de fazer da democracia o principal objetivo da agenda de reformas da UE. A união precisa de encontrar formas institucionais para aumentar a participação dos cidadãos ou então os cidadãos rebelar-se-ão..Os parlamentos nacionais também parecem mais fracos depois do Brexit. Os continentais têm sido em grande parte espectadores passivos do melodrama do Brexit, rezando e esperando que o senhor Barnier entregue algo digerível para todos os diversos eleitorados locais da UE. A Câmara dos Comuns britânica tentou afirmar a sua soberania, mas esse nobre esforço terminou em farsa. Com o passar do tempo, as clivagens políticas dentro da Câmara multiplicaram-se, sem que ninguém fosse capaz de formar uma maioria viável, e muito menos plausível. Simon Jenkins compreendeu bem as origens e as implicações desta doença:."O Parlamento britânico nunca mais se pode proclamar como a 'mãe dos parlamentos'. É mais uma velha dama que murmura imprecações numa esquina, e a razão é que ainda está a decretar procedimentos concebidos para o tribalismo polarizado do século XVIII. Ritualiza o partidarismo e o desacordo e não se atreve a unir-se. É assim que as nações derivam para a guerra, com os seus líderes a percorrer os corredores do poder, de peito inchado e a clamar a ira dos deuses contra os seus inimigos. Facadas verbais superam os apertos de mão.".Os parlamentos individuais no continente têm diferentes histórias, organização e procedimentos, mas o partidarismo ritualizado e os desacordos flagrantes são notórios na maioria deles. Não admira que as sondagens demonstrem a pouca confiança do público nos parlamentos. No entanto, o sistema de representação parlamentar, ainda que disfuncional, continua a ser o principal pilar da democracia na Europa..Costuma-se dizer que, após a revolução neoliberal, os mercados têm uma vantagem sobre a democracia; os parlamentos já não podem adotar políticas não apreciadas pelos mercados. No entanto, a saga do Brexit sugere que os mercados nem sempre conseguem fazer as coisas como querem. Os mercados nunca ficaram felizes com o Brexit e, quando o referendo ignorou a sua preferência, pediram que o processo de saída da UE fosse rápido e consensual. Claramente, os seus pedidos caíram nas orelhas moucas dos atores democráticos. A democracia mostrou-se não apenas ineficaz, mas também obcecada consigo própria. Isso não augura nada de bom para o futuro. A democracia e o capitalismo precisam de trabalhar juntos, senão podemos esperar impasses, protestos e caos. Os populistas prosperam nessa atmosfera de caos, não apenas no Reino Unido mas também no continente..Jan Zielonka é professor de Política Europeia na Universidade de Oxford e autor de Counter-Revolution - Liberal Europe in Retreat.