A definitiva afirmação de um novo fado

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Pode não ter havido intenção na escolha do local, mas ao filmar junto à Torre de Belém um DVD para levar pelo mundo fora, Mariza faz do histórico cais de partida de Lisboa novo lugar de definitiva solta de amarras para uma nova epopeia. A bordo do fado, vestido à sua maneira, arranjado com ousadia, assumido com garra, comunicado, Mariza "acaba com um sentido", como canta na faixa de abertura do seu último disco. Um sentido que em si afirma, sem mais lugar para dúvidas, uma alma e voz fadista. Nova, arrojada, e capaz de fazer história.

A noite era especial. À "borla", o espaço acolheu uma multidão mais jovem que muitos poderiam imaginar, quase em jeito de plateia festivaleira sudoestana, apenas com banda sonora diferente.

Mariza , de negro, foi sóbria protagonista frente à Sinfonieta de Lisboa que, sob arranjos de Jaques Morelenbaum, correu quase todo o alinhamento do soberbo Transparente (o seu melhor disco) e por alguns temas mais antigos, em versões adaptadas à sonoridade que caracterizava a noite. Subtil, desenhando com parcimónia cenários que nunca afogaram a voz nem os diálogos entre guitarras, a orquestra foi corpo vivo sobre o qual, segura, Mariza mostrou o seu fado. Um fado que aceita toda uma herança tradicional, mas que vive o presente, olha em frente, partilha e entusiasma. O plácido sinfonismo de Desejos Vãos, a renovada grandiosidade do Cavaleiro Monge, o poder cinematopgráfico de Há Palavras Que Nos Beijam, a latinidade latente de Quando Me Sinto Só, a pulsão africana de Transparente, a euforia rítmica de Barco Negro (sem receio do recurso à percussão, tal como em Feira de Castro), a emoção pura de Duas Lágrimas de Orvalho (em dueto com o violoncelo de Morelenbaum), o arrepio de Medo, foram apenas alguns momentos de uma noite que Mariza dominou. Espectáculo, sim, mas pleno de um sentido de contida maioridade performativa que Mariza entretanto atingiu.

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