Causou surpresa em todo o mundo a "declaração doutrinária" que o Vaticano deu a conhecer na semana passada. Os padres são agora autorizados a abençoar casais homossexuais, diz o texto Fiducia Supplicans, divulgado pelo Dicastério para a Doutrina da Fé com a aprovação do Papa Francisco. As uniões entre pessoas do mesmo sexo continuam a ser desconsideradas, uma vez que o documento sublinha que o casamento é a união entre um homem e uma mulher. No entanto, a aprovação de bênçãos é um passo inédito..Em entrevista escrita ao DN, Frederico Lourenço, de 60 anos, cristão homossexual que ganhou o Prémio Pessoa em 2016 pela tradução da Bíblia a partir do Grego, diz que estamos perante uma decisão "histórica e radical"..O também escritor e professor de Estudos Clássicos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra admite que haja homossexuais desapontados pela declaração de segunda-feira, dia 18, por ela manter o fundamento do catecismo de que as práticas homossexuais são "intrinsecamente desordenadas". No entanto, vê aqui um "reconhecimento de que somos todos diferentes e de que podemos fazer parte da Igreja"..Que sentiu quando soube da notícia? Fiquei extremamente feliz e comovido. Não entendo as pessoas que desvalorizam isto, com o argumento de que não é ainda o que elas pretendem. Para mim, posso dizer que foi um dos dias mais felizes da minha vida..É uma decisão histórica? Há quem a veja como a decisão mais radical deste pontificado. Concordo que é mesmo histórica e que, para os parâmetros da Igreja Católica, é radical. Posso dizer que nunca pensei que tal gesto viesse do Vaticano durante a minha vida -- já tenho 60 anos -- e sinto-me grato por ter podido testemunhar esta mensagem de que o catolicismo é mesmo o que "católico" significa: universal. Ninguém fica excluído, ninguém é rotulado de indigno de ser católico. Há o reconhecimento de que somos todos diferentes e de que, mesmo diferentes, podemos fazer parte da Igreja..Terá sido o passo mais importante de sempre da hierarquia eclesiástica para reconhecer e integrar homossexuais? No âmbito católico, sim. Há denominações protestantes que foram mais longe, mas sabemos que na Igreja Católica os progressos são lentos e sempre cautelosos. Não vou ter a ilusão de que toda a hierarquia católica concorda -- e entre os crentes toda a ala mais conservadora do catolicismo certamente está contra --, mas o facto de este gesto ter o selo de aprovação da parte do Papa significa que são os conservadores que precisam de se questionar..Em concreto, que significado tem para um casal católico do mesmo sexo receber a "bênção espontânea" de um padre? Na minha opinião, tem uma dimensão sobretudo afetiva e reconciliadora. Quando falamos de um casal católico do mesmo sexo, sejam dois homens ou duas mulheres, estamos a pensar em pessoas em cujas vidas a Igreja tem um papel fundamental. São casais que, desde que se conhecem, foram condicionados a sentir-se excluídos da Igreja. O facto de haver um gesto com este cariz corresponde justamente ao nome que se lhe dá: bênção..Esta bênção passa a ser feita desde que não assuma a forma e rito litúrgico, para não se confundir com o casamento, disse o Vaticano. É uma bênção discriminatória? Não me parece que seja discriminatória, porque temos de olhar com realismo para o contexto concreto da Igreja. Gosto mais de valorizar a dimensão positiva do que estar sempre a dizer que não chega e quero mais..Segundo o padre Anselmo Borges, citado pelo Público, esta bênção "implica efetivamente sacramento", ou seja, é um "sinal visível da presença de Deus". Que opinião tem? Gostei muito de ler as palavras do padre Anselmo Borges, pessoa que admiro há muitos anos. Ele teve a clarividência de perceber logo desde o início do pontificado do Papa Francisco que estava a acontecer uma mudança real. Eu próprio senti-me um pouco cético ao princípio e achei que o padre Anselmo estava a ser demasiado otimista. Agora dou-lhe toda a razão..O anúncio surgiu a poucos dias do Natal. Algum significado especial? O facto de decorrer até ao próximo ano o Sínodo dos Bispos pode ter tido alguma influência na decisão? Não sei avaliar o significado por trás do timing. Para mim, é um Natal muito mais reconciliado com as minhas mágoas contra a Igreja..A associação portuguesa de homossexuais católicos Rumos Novos falou em "desapontamento" por entender que o novo texto reafirma uma "doutrina que não inclui, antes exclui fiéis gays e lésbicas". Concorda? Pessoalmente não consigo ver as coisas assim, mas respeito quem se sinta desapontado..O escritor e jornalista britânico Matt Cain escreveu no jornal nglês The Guardian que sendo homossexual se sente insultado pela decisão, que o coloca como católico de segunda. Faz sentido? Não vejo utilidade em sermos extremistas e insistirmos apenas na nossa verdade. Temos de ver as coisas de uma forma mais abrangente e ver que há muitos pontos de vista dentro da Igreja e que, neste caso, prevaleceu um ponto de vista com francas possibilidades de melhorar as vidas das pessoas e de as ajudar no seu caminho..Que relação tem hoje com a Igreja Católica? Sente preconceito, abertura, indiferença? Embora goste de ir à missa, não sou nesta fase católico praticante, mas considero-me simpatizante do catolicismo e hoje atribuo à Igreja uma importância grande na minha vida interior. Nunca senti preconceito da parte de nenhum padre nos últimos trinta anos e só posso elogiar o espírito de abertura e de simpatia com que tenho sido tratado. Tenho a honra de ter vários amigos padres..Como integra na sua crença os anátemas bíblicos contra a homossexualidade? É por isso que não tenho sido católico praticante, pois não consegui ainda essa quadratura do círculo. Há duas ou três passagens na Bíblia, não mais que isso, que condenam a homossexualidade, mas o meu caminho é ser seguidor de Jesus e não está documentada uma única palavra de Jesus contra homossexuais em qualquer evangelho canónico ou apócrifo. Enquanto seguidor de Jesus, não vejo que haja contradição em ser cristão e homossexual. A essência do cristianismo é amar e fazer bem a outrem, mais nada..O Papa Francisco fica na História por ter afirmado em 2013 "quem sou eu para julgar", referindo-se às pessoas homossexuais. Há poucas semanas esclareceu que os transexuais podem receber o batismo. É um progressista ou um retórico? É sem qualquer sombra de dúvida um progressista. Apetece acrescentar: graças a Deus.