"Morro eu, mas salva-se a Pátria", "Morro, mas morro bem. Salve-se a Pátria" ou simplesmente "Morro bem. Salve-se a Pátria". Uma destas três, ou, na verdade, nenhuma delas. Estávamos a 14 de dezembro de 1918, Sidónio Pais tinha acabado de ser assassinado a tiro na estação de comboios do Rossio e o Repórter X, pseudónimo do muito inspirado e criativo jornalista Reinaldo Ferreira, destacado para o local, descrevia como tendo sido uma destas frases o que o presidente da recentíssima e muito atribulada República Portuguesa teria proferido antes de tombar, inerte. Não abriu sequer a boca, levou um tiro direto no pulmão. Reinaldo Ferreira tinha chegado atrasado ao local..Num contexto conturbado de início de século - a implantação da República em 1910, a Primeira Guerra Mundial de 1914 a 1918, crise e sentimento generalizado de derrocada -, da segunda década era esperada mudança, política, social, filosófica, artística. Aspirava-se a uma nova ordem, associada ao republicanismo e à ideia de cidadania. Um grupo deveras politizado na altura, os intelectuais detinham o poder da imprensa e da escrita e desempenharam um papel central na mobilização e na superação da crise da I República..Reinaldo Ferreira foi uma dessas figuras. Agraciado com a Ordem Militar de Sant"Iago da Espada em 1919, dele dizia-se ter sido "um repórter de ação, um novelista de mistério e um jornalista de emoção", como foi retratado no filme de 1985 realizado por José Nascimento. Foi jornalista de crime inventado por si próprio - os famosos crimes da Rua Saraiva de Carvalho -, foi enviado especial à Rússia para cobrir os eventos leninistas em curso mas escreveu tudo a partir de Paris; trabalhou n"O Século, no ABC, no Primeiro de Janeiro; criou o seu próprio folhetim de reportagens novelescas intitulado Repórter X; fez filmes. Pai do poeta Reinaldo Ferreira (filho), a atividade de Reinaldo pai pautou-se pelo cruzamento de ficção com desejo de verdade, tornando a realidade portuguesa mais empolgante..É na década de 1920 que chega o jazz a Portugal, que se iniciam os voos comerciais Lisboa-Madrid, o número de automóveis aumenta, o futebol ganha protagonismo, o cinema passa a ser falado, a moda feminina arrisca nos cabelos e saias mais curtos..O mundo caminhava em dois sentidos, paralelos, e até confluentes. Se as influências do futurismo se traduziam em ação na vida política e social, mas também nas artes plásticas e visuais e em certos géneros de literatura como os folhetins à Repórter X, na filosofia e na literatura dita mais erudita o trilho era o do existencialismo borbulhado por Kierkegaard e Nietzsche - a introspeção, o individualismo, a alienação..Se o artista plástico, poeta, ensaísta e dramaturgo Almada Negreiros foi o expoente de uma certa cultura-ação, o escritor, poeta, tradutor e publicitário Fernando Pessoa foi o de uma certa cultura-instrospeção..Regressado de Paris, em 1921 Almada escreve A Invenção do Dia Claro, um livro repleto de parábolas narrativas e poemas líricos, cujo subtítulo versa expressões de ordem como "démarches para a Invenção". Num dado excerto, pode ler-se: "Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: Olha uma árvore! Quando há uma árvore. Assim, inteiro, sem adjetivos, só de uma peça: Um homem!" Foi também na década de 1920, em 1925, que Almada escreveu o seu único romance, Nome de Guerra, que viria a ser publicado apenas em 1938..Passado, presente e futuro foram esferas que Fernando Pessoa cedo percebeu fazerem parte de um mesmo bolo e a necessidade de espraiar os diferentes "eus" que tinha dentro de si rumo a vidas próprias traduziu-se em heterónimos, em que os mais marcantes tiveram direito a biografia, estilo e ideais específicos, como foram os casos de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Bernardo Soares - autor do Livro do Desassossego. Foi na revista Athena, que fundou em outubro de 1924 com o artista plástico Ruy Vaz, que fixou os seus heterónimos. O próprio nome Fernando Pessoa tornou-se num ortónimo..Numa carta de 1915 endereçada ao escritor Armando Côrtes-Rodrigues, Pessoa já manifestava a sua preocupação para com uma ideia de progresso, social e intelectual, do país e do mundo: "Agora, tendo visto tudo e sentido tudo, tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade."