Vale a Jorge Luis Borges (1899-1986) uma "descida à terra", longe dos seus labirintos e das suas bibliotecas, esta reprodução cuidada, anotada e contextualizada de quatro conferências realizadas em 1965 sobre o tango, que o autor arrisca ser uma das palavras - a outra era "gaúcho", hoje em clara perda face à que abrange uma música e uma dança - que, universalmente, identifica a sua Argentina natal. Antes da essência, registe-se a circunstância: as cassetes com as quatro "palestras", bastante coloquiais, nem por isso menos eruditas e garimpeiras, foram entregues por um produtor musical a um escritor em 2002, depois de o primeiro as ter recebido de quem originalmente as gravou; ouvida e digitalizada a matéria-prima, tornou-se indispensável autenticá-la, algo que foi conseguido com recurso a um biógrafo e à viúva do autor das conferências. Todo este longo caminho é sintetizado por César Antonio Molina, que protagonizou uma das escalas: "Todo este périplo representa simbolicamente o que é a nossa comunidade ibero-americana: um galego grava um argentino; o galego entrega a gravação a um basco e o basco volta a entregá-la a outro galego para que, por fim, o documento de um argentino, um dos grandes mestres da literatura de todos os séculos, veja a luz."
Independentemente de todos estes sobressaltos e das décadas acumuladas, rapidamente se percebe que Borges não se poupou a esforços e não se limitou no entusiasmo para desempenhar uma missão de descobrimento e reconstituição. Aquilo a que vamos tendo direito, em quatro andamentos que se justapõem e que não fogem das fascinantes derivas do conferencista, lança pistas sobre todas as variantes da origem do tango: a histórica, a social, a musical, a literária, até a geográfica, com Borges a desenhar um mapa da cidade de Buenos Aires no último quarto do século XIX. Sempre rico em pormenores, sempre convicto e claro nas suas conclusões, o envolvido conferencista recorre a todos os meios, dos mais legítimos - a literatura publicada, por exemplo - aos menos convencionais - as múltiplas conversas que revela sobre o tema e, até, a sua própria experiência de vida.
Jorge Luis Borges recusa a hipótese de a palavra "tango" ter origem africana, algo que poderia depreender-se do som do vocábulo. Afasta, igualmente, a possibilidade de o tango ter origem suburbana, aí por razões económicas: os instrumentos originais seriam o piano, a flauta e o violino - a que, mais tarde, se juntou o bandoneon, importado da Alemanha -, compreensivelmente citadinos, por oposição à guitarra, que estaria envolvida se a maternidade tanguera se situasse nos subúrbios. Revela (com enorme surpresa para quem se tenha habituado ao presente da dança) que o tango era originalmente bailado por dois homens, uma vez que as mulheres recusavam a conotação algo marginal e violenta que o género enfrentou nos tempos iniciais. Mais tarde, as primeiras mulheres que se envolveram na dança, e que foram abusivamente conotadas com a "vida fácil" (leia-se prostituição), foram sobretudo as europeias de Leste que chegavam à Argentina, em especial as polacas.
Reflete ainda sobre aquilo que considera ser o progressivo crescimento da tristeza no tango. Refere Gardel e a exportação, os compadritos (praticantes originais) e a génese nas milongas, os comportamentos na base do "código de conduta" (a "seita da faca e da coragem"), o seu próprio envolvimento no caudal criativo (por exemplo com o conto O Homem da Esquina Rosada). Conclusão: quem queira descobrir uma alternativa a The Meaning of Tango: The Story of the Argentinian Dance, de Christine Denniston, e a tudo o que já foi publicado sobre o assunto, ficará a ganhar. Porque, mesmo "falado", Borges nunca deixa de ser Borges. Lido ao som da voz única da grande Adriana Varela garante um par de horas de excelência e de prazer. E até pode dançar-se em consonância.