A dança bastarda de quem não concorda com a vida

Ou a consolação e a redenção segundo Alain Platel, que traz o seu novo trabalho,<em> tauberbach</em>, hoje a Guimarães, no Centro Cultural Vila Flor e, de amanhã até sábado, em Lisboa, no Teatro Maria Matos.
Publicado a
Atualizado a

Um coro de pessoas surdas a cantar Bach e uma mulher esquizofrénica que vive, por decisão própria, há vinte anos num aterro sanitário do Jardim Gramacho (estado brasileiro do Rio de Janeiro). Contudo, dizê-lo assim é redutor, ou não houvesse o belga Alain Platel passado anos em torno dos dois objetos que inspiraram esta sua última "dança bastarda" - como refere comummente o próprio para descrever o seu trabalho - tauberbach.

O primeiro tem como autor o artista polaco Arthur Zmijewski, que pediu a um grupo de pessoas surdas que cantassem como soa Bach a quem não ouve. O resultado foi filmado em Tauber Bach. "Usámos Tauber [surdo em alemão] Bach como ponto de partida. Quando lhes mostrei eles tinham de analisar as vozes das pessoas surdas e tentar ouvir aquilo como música verdadeira e tentar compor movimento nestas vozes de surdos. [Tauber Bach] não era para ser música atmosférica mas para ditar a direção para construir movimento."

Assim foi. Os bailarinos de Platel (entre eles o português Romeu Runa, do extinto Ballet Gulbenkian), que são em igual medida intérpretes e criadores do que vimos de cada vez que a companhia les ballets C de la B sobe a palco, dançam ao som das vozes "surdas" e eles mesmos cantarão árias de Bach e de Mozart ao longo da peça. Algo que começou como exercício, mas veio depois a integrar a performance, explica o belga Alain Platel ao DN.

Depois há Estamira, o nome da mulher que dá nome ao documentário sobre ela, realizado pelo brasileiro Marcos Prado (2005). "O que me abalou mais foi perceber que é uma mulher que escolheu viver naquela situação, ela podia ter feito outra escolha." Lá iremos. A atriz Elsie de Brauw aparece no palco como uma espécie de evocação ou lembrança de Estamira. As frases que profere são dela.

Há a voz de Elsie e outra, masculina, que a interpela no interior da sua cabeça e que nós ouvimos. No início há ainda um constante zumbido de uma mosca. A voz de Elsie, Estamira ou de ambas foi usada "como uma voz interior, está a falar com Deus ou com outra coisa qualquer", explica Platel. É essa mesma voz que enfrenta a plateia e lança: "I do not agree with life" ("Eu não concordo com a vida"). Atrás dela os bailarinos dançam indiferentes às suas palavras. Como, de resto, durante grande parte do tempo. Parecem estar demasiados a cumprir essa vida contra a qual Elsie se revolta.

Alain Platel está com a sua atriz: "Eu concordo completamente com o que ela diz. O que não significa que tenhamos de estar deprimidos ou algo do género. Eu continuo a considerar a vida como algo surreal, não sei como a viver de forma adequada, como lhe sobreviver. Nesse sentido sinto-me desamparado como qualquer outra pessoa."

Mas depois há a "consolação" que a dança traz, a "redenção que vem do trabalho em grupo", a alegria dos bailarinos e de Platel - que não tem formação em dança ou em coreografia e trabalhava na reabilitação de pessoas com deficiências físicas e/ou mentais - ao passarem tempo com crianças com deficiência profunda.

E há Bach. "[Aconteceram] coisas violentas e tristes na minha vida daquelas coisas em que se pensa que o mundo é demasiado duro e que não saberia como superar, e percebi que a música de Bach era algo que me impelia sempre a continuar ou a ver as coisas de modo diferente. É algo muito misterioso, por que gosto mais de Bach do que de outros compositores", diz o orquestrador de bailarinos que já em que já em Iets op Bach (1998) e Pitié! (2008, baseado na Paixão segundo São Mateus) havia usado o compositor alemão.

A dança, se traz "consolação", diz o coreógrafo, "não dá respostas, mas o trabalhar em conjunto com as pessoas sim." E em tauberbach, que estará hoje em Guimarães, no Centro Cultural Vila Flor e, de amanhã até sábado, em Lisboa, no Teatro Maria Matos, não há respostas. É Alain Platel quem diz que não existe ali "uma verdadeira mensagem." E acrescenta: "Tento não fazer performances em que há uma mensagem clara."

O que parece haver é um corpo a corpo do caos convicto de Estamina formado pelas suas certezas - "I will not change my being, I was conceived like this. I"m perfect, haven"t you notice?" ("Eu não mudarei o meu ser, eu fui concebida assim. Eu sou perfeita, não repararam?") contra o caos físico, carnal, sensual, grotesco e libertino dos bailarinos por entre o monte de roupa que ocupa o palco. Certo é que no final ela, Elsie ou Estamira, se junta a eles. E se em tauberbach há redenção, ela vem de aceitar "o caos e a sua beleza", confirma Platel. Ele que vai continuar. "Até sentir que já não tenho forças ou que já não estou apaixonado por isto."

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt