A cruz de Carlos

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Imagens da saída de Carlos Cruz do Tribunal da Boa Hora após o primeiro dia de audiências do processo Casa Pia. E não façamos juízos precoces sobre a sua culpa ou inocência. Mas são as imagens mais brutais, numa televisão que vive da brutalidade das imagens, dos últimos tempos.

Nelas se encontra o pior de dois mundos. De dois mundos que dançam uma coreografia macabra. O pior da natureza humana, naquele cortejo popular que o apedrejava de insultos, e o pior da natureza pós- -humana. A natureza pós-humana é a natureza das imagens. E a televisão, de tão próxima querer estar da realidade, cria uma pós-realidade, cria uma pós-humanidade. Quando a televisão, que se especializou em criar reality shows, encontra um à sua medida, só pode vampirizá-lo.

A turba insultava histericamente e a televisão vampirizava as imagens dessa histeria má. Hipótese académica: ter-se-iam os chamados populares manifestado com essa eloquência apedrejante se as câmaras não estivessem lá? Provavelmente não.

A televisão é um amplificador afectivo. Dos bons e dos maus afectos. Veja-se a eficácia televisiva de um programa como «ponto de encontro» ou, por outro lado, daqueles reality shows de muito sucesso nas televisões brasileiras e norte-americanas, que se organizam a partir da compulsão da agressividade. São chamados para o ringue de combate dois personagens que podem estar em conflito, e o tempo televisivo encarrega-se de amplificar até níveis ensurdecedores esse conflito.

A televisão cria um mediodrama. E esse mediodrama tem a capacidade de agitar o resíduo da alma humana. A televisão levanta o sedimento que a cultura ajudou a esconder, de violência, raiva, perfídia. Essa camada de poeira.

Em «ponto de encontro» o processo tinha consequências simétricas mas a metodologia era a mesma. A criação de uma hiperemocionalidade através da gestão afectiva do espaço concentracionário do estúdio. Com todas as câmaras voltadas, não se pode ficar indiferente.

E o desejo de síntese e eficácia que a televisão exige tem correspondente afectivo. Os afectos têm de ser simples e claros. Agressividade gratuita e animal, ou a emoção líquida, choro. Há uma nova escola televisiva que começa a especializar-se na captação do choro das vítimas. Uma lágrima vale mais do que mil imagens e seguramente mais do que um milhão de palavras.

A saída de Carlos Cruz da Boa Hora é um altíssimo momento de baixíssima televisão. O combustível fornecido pela turba aos jornalistas é feito do pior que a natureza humanam tem. E um jornalismo qualificado e com um limiar ético mínimo deveria perceber que um mau combustível danifica o motor. Com danos que podem não ser imediatos, mas que se vão acumulando e que acabam por se virar contra o próprio jornalismo.

Em boa hora decidiu a juíza passar o julgamento para Monsanto, onde fora da fúria canibal dos populares, e mais longe do comportamento vampirista das televisões, se possa de facto fazer justiça. Porque a pior das justiças é certamente esta sopa fétida em que a justiça popular se encontra na sala de audiências com a justiça mediática.

Ironia do País, da vida e do momento. Imaginaria alguma vez o senhor televisão, o grande prestidigitador do ecrã, que seria transformado na carne para canhão de todas as televisões?

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